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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Maurício Adelino da Silva
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 03/01/2018
Sumário

Maurício Adelino da Silva participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

 

O presente trabalho tem por objetivo apresentar um pouco da minha trajetória de vida e como ela me conduziu a escolha profissional no campo da Educação.

Acredito que nossa formação começa nas primeiras interações sociais e educacionais, por esse motivo, julgo ser imprescindível mergulhar nas memórias da infância e na história de vida dos meus pais, para compreender possíveis indícios do porquê da escolha de ser professor de história e entender melhor minhas práticas educacionais.

Minha história de vida começou antes de eu nascer. Começou marcada pela vida de retirantes dos meus pais em uma das maiores cidades do Brasil, o Rio de Janeiro. Meus pais são naturais de uma área rural chamada Cacimba Doce que faz parte do munícipio de Fagundes, na Paraíba. Essa cidade fica localizada no agreste paraibano. Meu pai é o filho caçula de uma família de 7 irmãos. Começou a trabalhar em uma fazenda aos 7 anos de idade em troca de comida. Frequentou poucas vezes uma sala de aula em função da necessidade de ajudar sua família na roça e em trabalhos da fazenda. Alguns de seus irmãos mais velhos vieram para o Rio de Janeiro em busca da sobrevivência na década de 1960. Aos 17 anos de idade, na década de 1970, ele fez o mesmo percurso de seus irmãos. Sua infância e adolescência foram, em grande parte, roubadas pela miséria que foi submetido. Isso é muito doloroso de relatar!

Como muitos de sua época, o primeiro emprego que conseguiu na cidade do Rio de Janeiro foi na construção civil, local onde podia dormir. Depois de alguns anos voltou para Cacimba Doce e casou com a minha mãe que tinha 17 anos. Minha mãe teve uma educação familiar muito tradicional, em outras palavras, foi criada para casar e cuidar do lar. Ela tem uma memória muito marcada pelo trabalho na roça como algo árduo que a impedia de brincar e de estudar. Enquanto meu pai criou-se analfabeto, minha mãe ainda conseguiu chegar até a antiga segunda série.

Com poucos meses de casados, em 1980, vieram para o Rio de Janeiro e foram morar na Favela da Rocinha. Dividiam um “barraco” com a família de uma tia minha, irmã do meu pai. Minha mãe engravidou de mim pouco tempo depois. Sou o filho mais velho de 4 irmãos. Após um curto período morando na favela perceberam novos códigos sociais de sobrevivência que eram muito diferentes dos de suas origens. Tiveram que aprender a lidar, principalmente, com o preconceito por suas origens nordestinas e serem considerados invasores. Meus pais pagaram aluguel por alguns anos até que, por volta de 1986, conseguiram comprar um espaço no alto do morro e construir sua própria casa.

Eles sempre me incentivaram a estudar porque acreditavam ser a única forma de uma pessoa pobre ascender socialmente. Lembro da minha mãe falando várias vezes ao longo da minha vida que eu não seria burro como eles, que não trabalharia como o meu pai na cozinha de um restaurante, mas estudaria para no mínimo me tornar garçom, emprego um pouco mais valorizado na época. Por não saber ler, meu pai perdeu várias oportunidades de promoção nos empregos. Meu pai passou boa parte da sua vida profissional nas cozinhas de restaurantes exercendo várias funções, mas na maior parte do tempo, no exercício de cozinheiro. Ainda lembro quando criança da primeira vez que entrei em um carro, devia ter uns 5 anos de idade. Para ganhar um dinheiro extra meu pai lavava os carros do prédio onde trabalhava, ficava com as chaves e aproveitava para andar um pouco dentro da garagem comigo no carro. Meus pais pensam semelhante a boa parte da nossa sociedade, valorizam apenas os saberes aprendidos em sala de aula.

Minha educação começou em casa, com minha mãe me ensinando as primeiras letras de forma bem tradicional, quando errava várias vezes a mesma letra, recebia beliscões. Hoje compreendo a necessidade de cativar o interesse pela leitura antes do início do letramento, sem essa etapa, vira tortura. Comecei a frequentar aos 6 de idade uma escola popular perto de casa, na favela da Rocinha. Recordo-me de gostar de correr pelo pátio e de sempre ficar de castigo em uma sala de joelhos e de frente para a parede por querer continuar brincando nas aulas.

Tive a educação marcada pela presença da minha mãe, pois era ela que me ajudava nas lições de casa. Ela pedia para eu ler tudo que encontrava pela frente e ficava falando para todas as pessoas. Ter um filho alfabetizado e leitor carregava significado e valor especiais para ela que vinha de uma família de analfabetos. Era o domínio de um código importante para uma sociedade letrada que ela fazia chegar ao seu filho. Algo que para a maioria de seus familiares foi inatingível. Até hoje ela faz questão de dizer que foi ela quem me ensinou as primeiras letras e palavras. Confesso que busco essa emoção nas minhas práticas e resultados com as crianças que trabalho em sala de aula, contudo, percebo que talvez nunca sinta tamanho sentimento em função de ser algo tão singular para alguém que vinha de uma família de maioria analfabeta.

Quando completei 8 anos de idade, em1989, tivemos que ir morar em Cacimba Doce (Fagundes), na Paraíba, porque minha mãe estava muito doente e precisava mudar de ambiente. Moramos nesse lugar por 4 anos e hoje compreendo ter sido uma experiência importante para minha vida por sua diversidade de contatos. Cacimba Doce é um local sem água encanada e na maior parte do ano o clima é seco e muito quente. Eu dividia minha vida entre buscar água, lenha para cozinha, trabalhar na lavoura, ir à escola e brincar. É curioso que mesmo com tantas atividades pesadas na rotina do dia, ainda carrego muitas lembranças de brincadeiras. Nossa vida era regulada pelo tempo da natureza, uma experiência que só percebo hoje como foi importante para minha formação. Também presenciei a extrema pobreza e os seus reflexos, como o trabalho infantil, fome e grande evasão escolar. Nós não passamos por uma situação tão grave porque o meu pai continuou a trabalhar no Rio de Janeiro e a enviar mensalmente um valor em dinheiro para nossas despesas. Também percebi como era difícil uma mulher viver só com os filhos em uma sociedade tão machista, ainda mais em um local tão pequeno.

As escolas da região tinham um corpo docente formado por professores sem formação em educação. A maioria só tinha concluído o ensino até a antiga 4ª série. Nossas aulas se resumiam a cópias de textos do quadro, leitura, ditado, citar a tabuada e resolver cálculos das quatro operações básicas. Tive uma professora que orava no início de todas as aulas e que repreendia e advertência as crianças que não sabiam as orações. Outra lembrança que trago na memória é de muitos alunos comiam felizes as refeições que eram servidas na escola, afinal era só lá que comiam determinados alimentos como, carne, legumes e feijão. Os professores eram muito respeitados pela comunidade local e era comum serem presenteados com animais e frutos das colheitas. A maioria dos professores era de cargo comissionado. Nunca vi a presença de ninguém na escola que não fosse professor ou merendeiro. Alguns professores eram muito temidos por sua severidade e fama de beliscar, confesso que adorava todos eles e eram muito afetuosos comigo. Enquanto morei na Paraíba nunca fique de castigo, de joelho no milho, como quando tinha 6 anos na cidade do Rio de Janeiro. Considero que os professores trabalhavam bem, a despeito das suas limitações de formação e de suas condições de trabalho. Quando os alunos faltavam por um período longo de tempo, os professores iam às suas casas para saber o motivo da ausência.

Em 1994 voltamos a morar na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Esse retorno foi algo muito esperado por mim, no entanto acabei conhecendo um dos lados mais amargos da vida em sociedade, o preconceito. As crianças que moravam perto da minha casa começaram a rir de mim por voltar falando com sotaque. Mas o pior ainda estava por vir, ao ingressar na quinta série em uma escola chamada Camilo Castelo Branco, no bairro do Jardim Botânico. Nos quatro anos que fiquei nessa escola fui rotulado de “pará”, alusão à paraíba, e fui marginalizado como se o meu sotaque me colocasse em uma situação de inferioridade. Mesmo após a perda do sotaque ainda sofri com o preconceito. E nas minhas memórias, não há lembranças de professores reprimindo essas atitudes. Eu tinha uma vida financeiramente melhor, estava perto do meu pai, mas não tinha quase amigos na escola fundamental. Por esse motivo comecei a negar a identidade nordestina dos meus pais tendo vergonha deles por suas origens e por serem analfabetos. Par mim não foi fácil. Saí de uma escola em que todos me amavam, na Paraíba, e passei a estudar em uma escola na qual era só mais um aluno, não recebia carinho, apenas desprezo e abandono dos outros alunos, ninguém me protegia. Sofri o preconceito calado, sem nunca ter falado para ninguém. Só tive coragem de falar desse assunto quando estava na idade adulta.

Minha história de vida diz muito sobre a maneira que me comporto em sala de aula, sempre tentando falar sobre alteridade, respeito a diversidade cultural, colocando-me intolerante em relação ao preconceito. Costumo tentar identificar as origens dos alunos e valorizá-las no decorrer das aulas. Quando chega algum aluno novo na escola, procuro mobilizar os outros alunos para receberem o colega da melhor forma possível, acredito que venho colhendo bons frutos nesse sentido, pois os próprios alunos me sinalizam quando algum aluno vem sendo hostilizado por algum motivo.

Ainda falando da minha estadia na Escola Camilo Castelo Branco, considero relevante relatar que ao propor um trabalho que consistia em fazer um relatório de um livro lido, uma professora de Português despertou o meu interesse pela leitura, feito que nenhum outro professor havia conseguido até então. Os laboratórios de ciência também marcaram minha trajetória como aluno porque as aulas eram práticas e havia avaliação oral, o que me forçava a estudar e perder parte da timidez. As aulas passeios também foram relevantes para minha trajetória de aprendizagem, com elas tive acesso a um capital cultural que jamais tive em família.

Nós somos aquilo que vivemos, nossas práticas docentes são fortemente marcadas por experiências que tivemos na nossa vida como aluno. Compreender um pouco desse universo de quando aluno é compreender o universo dos alunos que são tão diversos. Compreender a maneira de lidar dos professores conosco nos primeiros anos de escola é estabelecer um horizonte de expectativa de inclusão social. Mergulhar na nossa própria história é trocar saberes escolares que até então nunca havia pensado e sistematizado.

No Ensino Médio fui estudar na Escola Estadual André Maurois. Uma escola que adorei estudar porque nela nunca sofri preconceito, foi um momento de liberdade. Aos 17 anos tive que conciliar trabalho com a escola. Eu estudava pela manhã e trabalha a tarde e parte da noite. Esse período foi muito difícil, tinha que estudar no ônibus ou no recreio quando tinham avaliações. Aos 18 tive que conciliar, por um curto período de tempo, a escola com a obrigação militar. No período em que estive no Exército percebi que deveria esperar e alçar mais objetivos para a vida, para além do trabalho em uma lanchonete. Nessa escola fui pela primeira vez ao cinema, também entrei pela primeira vez em uma biblioteca, tive minha primeira namorada, comecei a ler as obras de Machado de Assis e conheci, por intermédio dessa namora, o pré-vestibular popular, que funcionava aos sábados na própria escola, que me abriria novos horizontes para a vida. Nesse período estava desempregado e comecei a conciliar o terceiro ano do ensino médio com o pré-vestibular. Como era um bom aluno nas disciplinas de exatas, resolvi fazer vestibular para informática, menos por convicção e mais porque era o curso da moda. As provas de vestibulares desse período eram marcadas pela valorização excessiva de conteúdos curriculares. Essas provas pareciam visar mais a exclusão dos alunos das camadas populares e, em contrapartida, beneficiar os mais abastados economicamente. No primeiro vestibular que fiz não obtive resultado positivo, depois dessa primeira frustração, resolvi trabalhar e pagar uma universidade particular.

Após terminar o Ensino médio, demorei uns seis meses para conseguir emprego. Ao longo do tempo descobri que seria impossível arcar com os custos de uma universidade privada. Nesse mesmo período passei a frequentar um grupo jovem na Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, na Rocinha, no qual descobri, por meio de alguns colegas, que haveria um processo seletivo para outro pré-vestibular comunitário, o do Colégio Teresiano.

A participação na igreja católica me proporcionou um maior amadurecimento em função do convívio com pessoas mais velhas, algumas já faziam faculdade. Dessa maneira, iniciei o curso do pré-vestibular, contudo ainda com muitas dúvidas quanto a profissão que escolheria. No período em que estive no pré-vestibular e participando dos encontros da igreja, onde fazíamos ações com cunho social, muitos questionamentos em relação a desigualdade começaram a surgir em mim.

As discussões na Igreja e em algumas aulas do pré-vestibular fizeram nascer uma necessidade de compreender as diversas problemáticas sociais principalmente as que se referem à exclusão, tão presente no meio social que me encontrava. Queria explicações que ajudassem a compreender esse mundo e também me dessem elementos para construir uma sociedade mais justa. As aulas e as leituras da disciplina de História foram preenchendo uma parte dessa busca por respostas. Iniciei o curso de história em 2003 na PUC-Rio com o objetivo de não ser mais alienado e de desnaturalizar o processo histórico em sala de aula. Acreditava que seria um ótimo profissional e sempre defendi a ideia de que o professor deve ser o principal militante por uma educação pública e de qualidade.

Orgulho-me de ter sido o primeiro membro de minhas famílias materna e paterna a ingressar em um curso universitário. Meu pai ficou muito emocionado com minha aprovação no vestibular que chorou ao receber a notícia, nunca o vi chorando em toda a minha vida, apenas nesse dia. Um homem que começou a trabalhar com 7 anos de idade em troca de comida e nunca frequentou uma sala de aula, agora tinha um filho fazendo faculdade. Essa é a minha história, mas também de outros envolvidos nela, me motivando e/ou sendo inspirados por ela. Depois do meu ingresso no curso universitário tive o prazer de ver muitos outros familiares e amigos passarem pelos portões das universidades como estudantes e não mais como trabalhadores.

As aulas da PUC começaram e com elas a responsabilidade de me manter e continuar no curso. Eu não podia fracassar porque muitas pessoas dependiam do meu sucesso para trilharem um caminho de inclusão social. Eu achava que todos na PUC eram ricos e tinham estudado nas melhores escolas e, por isso, talvez não fosse conseguir acompanhar as aulas. No entanto, estava enganado e percebi com a convivência que a maioria dos alunos da minha turma de outras turmas do curso eram bolsistas, assim como eu.

O curso de História começou por história antiga, um assunto muito distante da realidade que estava procurando compreender, por isso quase desisti do curso no terceiro semestre. Mas aos poucos fui percebendo e amadurecendo um gosto pelas aulas de História e pelos debates que surgiam. As viagens-aulas que fiz ao longo do curso me ofereceram um capital cultural que, certamente, não teria condições financeiras de obter se não fosse essa oportunidade. A crítica principal ao curso, consiste na formação ofertada, que sempre me pareceu mais voltada para a pesquisa e não para a sala de aula. Comecei a trabalhar como professor sem saber o que de fato era ser um.

Na área de pesquisa tive duas experiências que considero relevantes. A primeira quando uma doutoranda me pagou para fazer um levantamento no arquivo nacional. Eu devia buscar indícios em documentos do Brasil Colônia sobre alguns povos indígenas. Esse momento foi importante por me proporcionar o conhecimento de uma parte do ofício de historiador e por ter me proporcionado conhecer o arquivo nacional, no entanto, confesso não ter gostado dessa primeira aproximação com a pesquisa, pois não sentia aquilo como parte de mim. Queria ser professor, o bacharelado nunca foi meu interesse maior, nem sabia de sua existência até cursar a faculdade. A segunda experiência de pesquisa foi como bolsista de iniciação científica pela FAPERJ no trabalho de História Comparada entre Brasil e Argentina no século XIX, orientado pela professora Maísa Mader. Considero esse segundo momento na pesquisa como importante, pois grande foi o aprendizado que construí nas reuniões com a professora orientadora e meu colega também bolsista Cláudio Daflon. Além disso, vale destacar as experiências de campo na Biblioteca Nacional e no IHGB. Momentos ricos em saber para qualquer estudante de história.

As aulas obrigatórias de Educação me proporcionaram o contato com uma rica bibliografia de educadores renomados. Entretanto, senti muita carência de um curso que mesclasse a dimensão teórica com a prática. Esse diálogo pouco ocorreu ao longo de todo o curso de história. A experiência futura com a sala de aula colocou para mim a necessidade de transformar o saber acadêmico, adquirido nas aulas da faculdade, em saber escolar, tendo em vista que o curso se resumiu a reproduzir leitura de textos acadêmicos o que acabou por negligenciar a dimensão escolar do aprendizado de História.

Em 2007 ao terminar a graduação, tinha como objetivo iniciar, o quanto antes, o trabalho como professor para certificar-me se havia escolhido a profissão certa. Se quando comecei o curso tinha certeza do que fazer, nesse momento, já não tinha mais, devido ao fato de estar saturado de estudar história. Soma-se a isso o fato de muitos colegas, recém-formados, estarem estressados na profissão ou desempregados. Por conta dessa dúvida, optei por não tentar seguir no mestrado acadêmico em um primeiro momento.

Nesse período deixei currículo em várias escolas particulares, fiz prova para vários concursos e em ambos os processos não fui convocado por nenhum. Fiquei 3 anos trabalhando no comércio até ser convocado, em 2011, para a prefeitura de Angra dos Reis, onde estou trabalhando até o atual momento. Esse período de 3 anos foi muito difícil, trabalhava em algo que não queria, sofria pressão em casa por não ter escolhido uma profissão que conseguisse emprego rápido. Muitos colegas estavam na mesma situação e isso me deixava ainda mais triste. Havia vagas em muitas redes, porém a política clientelista dos políticos de fazerem contratos dificultava o concursado de ocupar seu cargo por direito. Isso aconteceu comigo no concurso para Angra, tive de esperar uns dois anos a mais em função dos contratos.

Quando cheguei na escola Áurea Pires da Gama não tinha a menor ideia do que me esperava, isso me causava muita insegurança. O diretor da Escola me passou as turmas, como ele era formado em História perguntei o que trabalhar, ele me deu uma cópia da parte de História do PCNs e uns livros. Além disso, não tive nenhuma orientação ou treinamento do funcionamento da escola, como preencher diário, mecanismos de avaliação ou outras informações pertinentes para quem está começando a vida no magistério. A escola tinha um corpo docente onde quase 50% era de contratos, isso tinha um reflexo negativo na escola porque não se estabelecia um trabalho a longo prazo, era alta a indisciplina e as práticas pedagógicas questionáveis, como a memorização de datas comemorativas.

Todos os meus sonhos de adotar práticas de aulas mais interativas e provocar uma discussão reflexiva não se concretizaram nesse primeiro ano. Em umas das turmas eu tinha que separar, quase todos os dias, várias brigas. Adolescentes falam e gritam constantemente, eu não sabia como lidar com isso, achava que eram mal-educados, contudo com o passar do tempo percebi que era comum nesse período da vida falar e gritar como forma de comunicar-se, talvez faça parte da idade. A diretora do primeiro ano do fundamental era bastante autoritária e não respeitava a autonomia dos professores. Houveram casos dela questionar os conteúdos de uma professora no meio da aula e de pedir para um inspetor vigiar os professores nas salas. E ainda de assédio moral com os professores participantes de greve dando-lhes nota baixa na avaliação funcional. Nosso horário de coordenação era cobrado que fosse feito na escola, mesmo sem um espaço adequado para estudo ou reunião. Era rígida ao ponto de ficar na porta da escola anotando o nome e ameaçando os professores que se atrasavam. No segundo em que estava trabalhando nessa escola, essa diretora se aposentou e os professores a medida que iam se conhecendo e ficando mais experientes passaram a adotar uma postura mais coletiva e não aceitar mais posturas desse tipo da chefia.

Esse primeiro ano foi de adaptação e experiências trocadas com alunos e colegas. A sala virou um grande laboratório, não tinha certeza de nada, mas percebi que tinha um grande carisma com os alunos. Uma boa parte gostava da minha aula ou gostava da minha pessoa por ser um professor que conversa muito e demonstra se preocupar com eles.

Somava-se a falta de experiência, a falta de estrutura para a realização do trabalho, o que o dificultava bastante. O piso da escola, em sua maioria, estava se soltando, os banheiros estavam, e ainda estão, em péssimas condições, inclusive em termos de limpeza. Havia um laboratório cujo os computadores não funcionam, fato que se perdura até hoje. Já dei aula várias vezes com iluminação parcial, a empresa de energia e a prefeitura ignoram todos os memorandos enviados pela escola com pedidos de um transformador. Quando preciso passar um vídeo, não consigo porque sempre tem alguma coisa que não funciona. A copiadora está constantemente quebrada e o reparo é realizado meses depois. Na escola há uma fossa que não suporta a quantidade de dejetos e constantemente é liberado um odor ruim por todo o ambiente. Esses problemas tem uma interferência muito grande na vida desses alunos. E pego questionando: como falar de transformação social quando é oferecido condições tão precárias? Nesse contexto desestimulante, a maioria das aulas se resume a utilização do quadro para cópia e discussão das temáticas.

No segundo ano de magistério iniciei uma especialização a distância na UCAM em História da África e do Negro no Brasil. Essa especialização colaborou para produzir aulas que não fossem tão marcadas pelo eurocentrismo como foi minha graduação. Esse curso deixou um pouco a desejar porque não havia aulas presenciais onde os alunos pudessem trocar e produzir conhecimento.

O tema de História da África ainda é um grande desafio de se tratar em sala de aula em função do preconceito construído em mais de 400 anos de escravidão. Os alunos apresentam muita resistência a aspectos da Cultura Negra, principalmente, relacionados as religiões afro-brasileiras. A Escola Áurea Pires fica em um bairro no qual a comunidade evangélica é preponderante, por isso, é preciso muito cuidado ao tratar de temáticas religiosas. Contraditoriamente, uma especificidade da escola é o fato da mesma está localizada dentro de um território de remanescentes de quilombolas reconhecido pela Fundação Palmares, contudo ainda não titulada. A escola foi incluída como quilombola no Censo de 2015 após muitas discussões sobre essa nomenclatura. Por estar localizada dentro do território demarcado como quilombola, ela é frequentada por remanescentes do quilombo do Bracuí o que tem exigido dos professores um planejamento que atenda a demanda por maior inclusão da memória do negro na história do Brasil. Essa memória do negro sempre esteve de forma informal nas aulas e nos projetos da escola, porém nunca havia sido sistematizada em um currículo próprio da escola. Nesse atual momento tem sido nosso desafio produzir um currículo que atenda todas demandas do bairro, como a dos quilombolas, caiçaras, indígenas e outros.

A escola tem sido um lugar de troca de saberes muito interessante quando você está aberto a se desprender do currículo. No início ficava muito preso ao currículo de história até muitas questões da vida dos alunos desaguarem na sala de aula, como gravidez na adolescência, tráfico de drogas, estupro, crianças abandonadas, alcoolismo, dentre outros. Essas questões me fizeram repensar as aulas. Fui deixando de dar tanta atenção aos conteúdos de história e procurando tratar de temas que são de extrema importância para o cotidiano dos alunos. Essa nova forma de dar aula tem sido uma grande batalha em função das péssimas condições de trabalho, do despreparo para lidar com tantas demandas, do abandono por parte do poder público e principalmente, por não encontrar apoio nas famílias que delegam toda a responsabilidade à escola. Além disso, há uma difusão de padrões sociais que são difíceis de serem quebrados por ser tão presente na sociedade. Sua voz, por muitas vezes é apenas uma, contra tantas outras dizendo o contrário.

As coordenações da escola que deveriam ser voltadas para projetos conjuntos e troca de conhecimentos, acabam sendo espaços de lamentações e de apontamentos de problemas estruturais ou comportamentais. Os encontros de coordenação orientados pela secretaria são mais para os coordenadores mostrarem trabalho as suas chefias. São encontros sem pauta e com cronogramas vazios de significado. Nesse cenário de descaso e confusão, o professor para fazer uma formação continuada deve buscar por conta própria.

Toda a perversidade do sistema educacional leva o profissional da educação a um estado de frustração e impotência. Alguns excelentes profissionais estão deixando o magistério por não suportarem psicologicamente todas as problemáticas encontradas no espaço escolar, na maioria das vezes a causa não passa pela valorização salarial. Eu tento continuar nadando contra essa corrente, contudo muitas vezes fui vencido pelo cansaço e desânimo. O ano de 2015 foi uma experiência muito árdua para mim, fiquei psicologicamente esgotado por precisar trabalhar três turnos. Havia dias que não planejava nada por não ter tempo ou por cansaço. Tive crise de estresse em casa que demonstravam o quanto essa rotina vinha me fazendo mal. Já não conseguia rir e nem brincar com os alunos. Esse ano repensei e não quis mais trabalhar no noturno. Embora o EJA tenha sido de grande aprendizado por causa da exigência de pensar práticas educacionais para adultos que estavam a muito tempo sem estudar, principalmente, os mais idosos. Essa experiência foi frustrante por existirem muitos adolescentes com péssimos comportamentos que atrapalhavam o processo de aprendizagem das turmas, em especial, dos mais idosos.

Eu sempre gostei de dar aulas brincando para tentar me aproximar e ganhar a confiança e amizade dos alunos, tentando está sempre acessível. Porém, nem sempre consigo trabalhar via diálogo. Em algumas aulas a autoridade se sobrepõe como mecanismo para controlar e me proteger. Infelizmente, existem muitos alunos sem limites ou sem parâmetros familiares, o diálogo nem sempre funcionou nessas situações. Assim como eu, uma boa parte dos professores não abandonam a profissão por terem esperança de dias melhores, por quererem resistir e lutarem por uma educação inclusiva e libertadora. Além disso, tem uma dose de amor tão presente na relação com os alunos que te impulsiona por continuar. Espero sobreviver a isso tudo, pois não me vejo em outro espaço educacional que não seja com os alunos que mais precisam de mim, os da escola pública.

Esses anos de magistério me fizeram perceber a necessidade de formação continuada que pudesse acrescentar novos conhecimentos, mas sobretudo de uma formação voltada para a prática docente, para o compartilhamento de experiências e para um diálogo que apontasse para possíveis soluções. Essas demandas me levaram a ingressar no Mestrado Profissional de História em 2016.

 

 

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