Acervo Trajetórias Docentes
Luiz Carlos R. de Sant’ana participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)
Breve memorial de um professor de história
Entre as acepções de “memorial”, encontramos duas ordens significativas básicas que vão nos interessar. A expressão pode indicar “lembrança, apontamento que se toma de coisas que mais tarde se projeta escrever mais detidamente”. O vocábulo também remete àquilo “que traz à memória: [ao] que é digno de memória”. Em outras palavras, ao que é “memorável” (AULETE, 1964).
Devo admitir que já havia utilizado a estratégia de recorrer ao léxico para iniciar um pequeno e anterior trabalho acadêmico. Acho que não faz mal repetir a dose. De qualquer modo, vou seguir mais ou menos livremente a indicação acima.
Desde que esse afazer (o de escrever um memorial) nos foi proposto pelos professores do curso de Teoria do Ensino de História, venho me provocando e tomando notas (lembretes) de “coisas” para “escrever” mais tarde. Penso que, mesmo com o pouco tempo que pude destinar à tarefa, aquilo que sobreveio deve ser o que, de um modo ou de outro, feliz ou infelizmente, consciente ou inconscientemente, impôs-se como “memorável”, ao longo desses meus vinte anos de magistério.
Antes de começar, mas já começando, duas coisas. A primeira, assustadora, advém da frase acima: vinte anos! O tempo é um brincalhão. Me lembro, quase como se fosse hoje, da minha primeira aula de história no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o IFCS (UFRJ). Essa foi uma das imagens que se impuseram quando da sugestão deste exercício. Foi (e continua sendo) impressionante para mim como retenho uma quase fotografia desse episódio. Consigo ver a sala 200 repleta, com sua grande janela que se posta de frente para o Largo de São Francisco. Tenho na retina alguns dos rostos que ainda hoje encontro e reconheço e até alguns que já não estão mais entre nós. E como foi uma primeira aula, de graduação, isso já faz mais tempo ainda. Mas não vou contabilizar, este é um relato de memória, não de história, por isso (ainda bem) não sujeito aos princípios básicos da cronologia. E com isso não volto mais a esse ponto.
Pois bem, falava do assombro do tempo (um professor de história aturdido com o tempo é quase irônico). Um dos aspectos claros que vieram à tona, desde o início desta atividade, foi a constatação pueril (mas impactante) de como se pode fazer algo por tanto tempo e, simultaneamente, se pensar tão pouco sobre o que é feito. Este é um ganho que, penso, vai sobreviver à entrega deste escrito.
Um segundo ponto seria o da possível conveniência de uma auto-apresentação (mesmo que sucinta) de meu percurso profissional. Talvez seja útil para situar minimamente o que se segue. Nesse sentido, sumarizo que nessas duas últimas décadas trabalhei principalmente no ensino público e no nível médio. Não obstante, tive experiência de alguns anos com a rede privada, talvez com destaque para o atendimento a jovens e adultos em uma unidade do SESI.
Na esfera pública, fui professor da Secretaria de Educação por cerca de sete anos, lecionei por pouco tempo no município do Rio de Janeiro e, desde 1998, trabalho na FAETEC. Em 2013 assumi uma segunda matrícula na mesma rede, e, por conseguinte, solicitei exoneração da SEDUC. Geograficamente, as funções concursadas acima me fizeram atuar em Quintino, Tijuca, Praça Seca, Barra, Catumbi e São Cristóvão. Atualmente e há algum tempo, atuo com as três séries do ensino médio.
Tive e venho desenvolvendo outros campos de atuação na área, incluindo pesquisa e ensino à distância, em vários níveis. Como este relato está centrado na atividade docente presencial e na minha formação para tal (assim o compreendi), fico por aqui.
Finda esta parte introdutória, podemos retomar o plano inicial, o qual, lembro, seria o de fazer desfilar um conjunto de memórias que foram suscitadas a partir do convite para a feitura deste texto. Procederei livremente, depois verei onde isso vai dar e tento arrematar. Vamos lá.
Como mencionei agora há pouco, uma lembrança que se impôs foi a de uma primeira aula de história na graduação. O próprio prédio do IFCS e a sala 200 em especial (mas não exclusivamente, é claro) constituem-se, para mim, em um pleno lugar de memória (NORA,1993). Espaço esse ressignificado e atualizado a cada uma das muitas vezes que lá retorno, para vários fins. Não tenho dúvida que expresso, aqui, um lugar comum. A experiência universitária é marcante e costuma imprimir um antes e um depois na autonarrativa de cada um. Certamente vai ser muito aventada nos memoriais de meus atuais colegas. Mas foi o que se impôs, e estou respeitando esse ditame da irrupção memorialística (com certo gosto nostálgico, evidentemente). Uma das coisas que me chamam a atenção nessa recuperação é que, retrospectivamente, esse momento inaugural me remete ao choque intelectual que me atingiu já no primeiro período. Em um outro lugar comum da vivência universitária, me foi muito dura a constatação de que, a despeito de minha razoável autoestima e de minha reconhecida proficiência em história (entre meus pares pré universitários) eu não sabia coisa alguma. Sequer sobre a natureza, o estatuto do conhecimento histórico. Isso certamente não estava dado naquele primeiro dia, mas foi efetivo logo no início, principalmente nas aulas de metodologia, ministradas pelo respeitado professor Manoel Salgado Guimarães.
E como uma coisa puxa outra, isso me fez lembrar de um tempo mais recuado, no qual tinha a firme opinião de que se eu conseguisse dominar os dois manuais - gigantescos para mim - do José Jobson de A. Arruda, utilizados pelos meus irmãos mais velhos, eu saberia história (ARRUDA, 1980 e 1981). E como era difícil lidar com aquele texto. Não era ruim, mas nossa! Lembro de quadros das dinastias europeias (uma informação às vezes útil, mas eu pensava que tinha que conhecer, talvez memorizar aquilo...). Uma ilusão que levei para o meu próprio ensino médio, desta feita com o livro capitaneado pelo professor Aquino (1983). E, pior, para a faculdade. Pois entrei para a universidade com uma lógica mais ou menos próxima a essa (ampliando a condição do suposto domínio para um número um pouco maior de manuais ou livros, por certo). E isso tudo ruiu logo. E foi bom. E disso resultou (e se desenvolveu certamente) um traço que me acompanha. O lugar que pensei ser o da certeza, da afirmação, do controle, passou claramente para o da dúvida e da procura. Não era o que esperava, mas também não era ruim. Era diferente e permanente.
E por falar de reminiscências ainda mais recuadas, recordo agora (continuando a olhar minhas notas para escrever mais tarde, é claro), de uma cena que, embora reconheça como memória, às vezes eu mesmo duvido da sua consistência histórica, factual. Isso se dá quando lidamos com fragmentos muito antigos (ao menos comigo). Mas aconteceu sim. Um dos meus infantis impulsos para a história esteve associado a uma pergunta que fiz a minha mãe, em tempos já remotos, quase imemoriais... Diante de um telejornal que reportava sabe-se lá qual conflito armado, eu, de pronto, questionei: quem é o bom e quem é o mal dessa história? Sabiamente (mas de modo claramente frustrante e insuficiente para mim) minha genitora estabeleceu que nesses casos não há como estabelecer bandido e mocinho.
Um balde de água gelada. Das duas uma: ou minha mãe estava errada e não sabia de nada ou todo meu conhecimento do mundo, adquirido em milhares de horas de desenho animado, me era inútil na leitura desse mesmo mundo. Isso não podia ficar assim. Talvez daí aquela pueril vontade de domínio de saber de que falava um pouco atrás. Talvez.
De qualquer modo, agora entrando pela primeira vez no universo da minha docência, foi bastante curioso deparar-me, de novo, com uma indagação semelhante. E isso não faz tanto tempo; quer dizer, alguns anos...
Em uma aula sobre o período Vargas, uma aula de boa memória (com a lembrança de um bom retorno dos estudantes), uma aluna sapecou: mas o governo Vargas foi bom ou foi ruim? Algo que no tom juvenil significa: ele era do bem ou do mal? E como responder a isso? Dei meu jeito, espero. O que me chamou mais a atenção, na hora e depois, foi a reedição da minha própria pergunta e a reconfiguração da dificuldade com a mesma.
Uma pergunta chama outra. Dessa convocação vem a seguinte pérola: professor, os feudos eram cercados? Tenho até o registro (mnemônico) do nome desse garoto: Igor. Foi na primeira experiência docente que tive na vida, ainda como estagiário, não formado, via convênio com o CIEE (Centro de Integração Empresa Escola). Lembro que ganhava metade do piso de um professor. Não sabia o que fazer com todo aquele dinheiro.
Voltando à pergunta, não é que eu fiquei em dúvida? Me pegou de surpresa. Fui pela lógica e deu certo. Mas o Igor era surpreendente. Tenho saudades; não necessariamente do Igor, mas de interações criativas e interessadas, mesmo que ingênuas. Elas acontecem, mas não é o mais comum. Figura, o Igor! Mais de uma vez me fez ter que pesquisar. Bom aluno.
Nesse mesmo colégio, no meu primeiro dia de trabalho (não, não foi na turma do Igor), eu cheguei atrasado. Um trânsito louco. Adentrei em sala e o nervosismo era tanto que os quatro tempos (duas turmas) passaram como se fossem quinze minutos. Acho que foi a minha experiência mais próxima a de um lapso temporal. Mas não era isso o que eu ia dizer. Na continuidade desse período letivo, fui apresentado a outras facetas do que viria pela frente.
Recordo de uma estudante, muito jovem e comunicativa e que por motivos que nunca sabemos muito bem, acabou por me adotar como professor predileto e confidente. Não era exatamente estudiosa, mas era safa, não tendo maiores problemas com as disciplinas. Teve muitos, porém, com a vida. Aborto, complicações, impossibilidade de vir a ter filhos (tinha no máximo 16 anos), morte do namorado... A história a qual eu estava treinando para trabalhar não tinha muito sentido, nesse contexto. Passei a ouvir, mais que falar, às vezes é assim.
E o meu aluno mais educado, cujo nome nem se lembrasse eu declinaria, já tinha colocação no mercado. Era gerente. De boca. Fiquei sabendo disso quando o inspetor avisou para os professores (para minha mais singela surpresa), que o rapaz tinha ido armado para o colégio, mas havia deixado o revólver em consignação na secretaria, para não adentrar equipado em sala de aula, em consideração ao recinto (esse colégio, agora me dou conta, foi meio que um batismo de fogo).
Apesar de até hoje ter tido muita sorte e lecionar, no geral, em áreas e locais mais ou menos seguros (tanto quanto se pode estar seguro no Rio de Janeiro) e esse ter sido um dos poucos incidentes mais concretos, ele não foi o único nem o mais contundente. Mas esse outro lugar comum (e infeliz) eu deixo por aqui.
Por outro lado, e até para contrapor, morando bem próximo à UERJ e frequentando o campus por vários motivos, todos os anos eu tendo a me surpreender positivamente. É comum encontrar ou ser encontrado por ex-alunos e novos universitários; de diversos períodos. Não raro também são os “encontros” pelo facebook. Ali há tudo. De Miss América do Sul (aquela menina simpática e bem magra de uma fila à esquerda) a graduandos, formados, profissionais de amplo espectro e professores com titulação variada. Bons encontros.
Conforme escrevo e consulto os tais apontamentos, outras imagens se sucedem. A oportunidade desse memorial está quase como as famosas madeleines estavam para Proust (1982). A construção literária de um amálgama de memórias se sobrepondo e se intercalando, na verdade, estavam em mente desde o encontro com o tema memorialístico. A força do clássico (uma leitura que fiz já adulto) é impregnante. Dados porém o tempo, o prazo, e minha redação necessariamente nos estertores, vou passar para um ponto que incluí memória, no entanto é um pouco mais sistemático. Refiro-me à prática pedagógica que, nos últimos tempos, mais me renova como professor e me permite vislumbrar um locus pedagógico no qual me parece frutífero investir. Estou a falar de um trabalho de cineclubismo realizado na minha unidade de ensino na FAETEC São Cristóvão. Vamos a esse ponto.
Há mais de dez anos um grupo de docentes se reúne na Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch (São Cristóvão), para desenvolver um trabalho pedagógico a partir de imagens. Pessoalmente estive presente e atuante desde os primeiros meses, associando-me à iniciativa, assim que tive conhecimento da mesma. De lá para cá muitos docentes se desligaram (do Cine e às vezes do Colégio) e outros tantos se juntaram à equipe. Não cabe aqui uma descrição e ou histórico mais ou menos detido e sim a indicação de alguns princípios e práticas que me parecem relevantes, por apontarem alguns caminhos interessantes. De qualquer forma, antes, farei uma apresentação sumária da estrutura e dinâmica, para que você, leitor, possa saber do que estou falando.
Pois bem, o Cineclube Olho na Cena (temos nome próprio, escolhido pelos alunos, por meio de concurso; na mesma ocasião foi selecionado o nosso logotipo – Ver https://www.facebook.com/CineClubeEteab/). Então, o Oho na Cena é composto e dirigido de forma colegiada. Isso implica co-responsabilidade, trabalho e uma boa sensação de autogestão. A equipe mantém um grupo de quatro a seis membros profissionais. Alunos cujo estágio é oficialmente reconhecido têm voz e voto nas decisões. Passarei por cima dos nossos dilemas institucionais, importa dizer que, após árduo combate, dispomos (até o momento) de espaços para reuniões e exibição próprios.
Relativamente às atividades o nosso carro chefe é a exibição semanal de curtas metragens, no intervalo entre os turnos. O curta o almoço, como denominamos. Para além disso, montamos uma agenda que inclui cinefóruns (exibições temáticas, geralmente com convidados externos), ciclos de cinema (cinema e história; cinema e literatura), sessões de estudo, parcerias variadas etc.
Nossa proposta pedagógica básica se relaciona a toda uma tradição crítica que motivou e continua incentivando a criação de centenas de clubes de exibição e debate de filmes (cineclubes), mundo afora. Dessa forma, a proposta inicial e manifesta do Cineclube da ETEAB é a de suscitar o debate de temas e problemas através da apreciação cinematográfica (BETRUCE, 2016; CANNES, 2016).
Mas isso tudo era para poder destacar alguns princípios e práticas interessantes. Mesmo cuidando, me alonguei. Vamos ao ponto. Em recente balanço sobre a nossa prática (percebo agora que no Cine isso aconteceu, embora não tenha sido verdade para o principal da minha prática pedagógica, no espaço convencional da sala de aula, como observei anteriormente; me parece sintomático).
Retomando: em recente esforço de auto reflexão, pudemos notar, destacar e perceber afeição por três práticas constantes. O próprio trabalho coletivo, o princípio da participação voluntária do público (majoritariamente estudantil, mas que incluí outros docentes e funcionários administrativos) e uma atenção estética ampliada. Do primeiro destaque já falamos, a prática coletiva. A participação facultativa é real. A atividade básica é totalmente voluntária. Mesmo as ações que implicam o envolvimento de turmas só acontecem se os alunos e os docentes do dia e horário compram o projeto/convite (prévia e antecipadamente apresentado). A atenção estética fica por conta da produção de cartazes e chamadas públicas, que incluem pequenos vídeos (além e principalmente, é claro, da própria natureza do nosso material pedagógico fundante, a arte cinematográfica).
Vamos ficar por aqui (no que tange ao Cine e também frente a este memorial). O que realmente gostaria de falar é que talvez pela conjunção das três práticas acima mencionadas, o trabalho no Cine flua de modo tão nitidamente diferenciado frente à sala nossa de todos os dias. Isso é de uma nitidez cristalina, tanto para profissionais como para estudantes. Trata-se, em suma, de um espaço prioritariamente de prazer e de aprendizado. De um lugar que gera resistência à saída, quando da batida do sinal e que, diante disso, evidencia um contraste considerável com outras tantas e comuns situações e lugares no interior do espaço escolar. Inclusive em muitas de minhas próprias aulas. No final das contas, era isso que eu buscava expressar (e que só consegui chegar após o percurso). Esse era, é ou deveria ser a substância a partir da qual este memorial gostaria de estar pleno.
Em suma, nos últimos anos, o que de mais digno de memória (o mais memorável) na minha prática de ensino foi e é exatamente constituído dessas dezenas de momentos em que, pelos motivos aventados e/ou por outros tantos, o mesmo signo sonoro implicou dois sentidos bem claros, simultâneos e diversos: acabou o cine (a brincadeira pedagogicamente estimulante); vai começar a aula como nós a conhecemos.
Referências bibliográficas (somente as diretamente referenciadas no texto)
AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Delta, 5 volumes, 1964. Pode-se ver também a versão digital (não idêntica). Disponível em: http://www.aulete.com.br/memorial. Consultada em 13 de outubro de 2016.
AQUINO, Rubim et alii. História das Sociedades (das sociedades modernas às sociedades atuais). Rio de Janeiro, Ed. Ao Livro Técnico, 1983.
ARRUDA, José Jobson de A. História Moderna e Contemporânea. Rio de Janeiro, Ed. Ática, 1980.
.______. História Antiga e Medieval. Rio de Janeiro, Ed. Ática, 1981.
BETRUCE, Débora. Cineclubismo no Brasil - Esboço de uma história. Disponível em:
file:///C:/Users/Luiz%20Carlos/Downloads/236-822-1-PB.pdf. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, no 1, p. 117-124, jan/jun 2003 - pág. 117-124. Consultado em 29 de fevereiro de 2016.
CANNES, Michèlle. Cineclubes superam desafios tecnológicos se mantêm na luta pela tradição. Disponível em: http://www.ebc.com.br/cultura/2014/10/cineclubes-superam-desafios-tecnologicos-se-mantem-na-luta-pela-tradicao. Consultado em 29 de fevereiro de 2016.NORA, P. “Entre memória e História – a problemática dos lugares”. In: Projeto História. Revista P.G. PUC. São Paulo, n. 10, dez. 1993.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. No caminho de Swann. São Paulo, Abril Cultural, 1982.