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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Luciano Coelho de Magalhães
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 03/01/2018
Sumário

Luciano Coelho de Magalhães participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

MEMORIAL

 

Ouvir e deixar ouvir a voz dos professores, com a entonação dada pela experiência profissional, sempre tão relativa e permanentemente em construção, é fonte de muita insegurança e de muitas incertezas, [...]. (ANDRADE, 2001, p. 24-25)1

 

 

    Em, 5 de novembro de 2003, ao ser diplomado no hall do Cine Arte UFF, não imaginava que, quatro meses depois já estaria em uma sala de aula exercendo o meu ofício.

    Até então, a única experiência a frente de uma turma ocorrera no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho2, em São Domingos, Niterói-RJ. Naquela época – segundo semestre do ano de 2002 – achava-me no sétimo período do Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal Fluminense. Dentre as disciplinas que então cursava estava a Prática de Ensino II. Uma das atividades relacionadas àquela disciplina era o aluno, no final do estágio de observação, ministrar uma aula na presença do professor da turma e do professor da disciplina que cursava (Prof. Dr. Ubiratan Rocha). Confesso que a realidade de me ver professor, ao menos naquele momento, e pareceu muito boa.

    Contudo, meu verdadeiro batismo na profissão de professor de escola ocorreria no dia 6 de março de 2004, no Centro Interescolar de Agropecuária José Francisco Lippi3, uma escola agrícola pública – pertencente à rede estadual de educação –, situada em Venda Nova, zona rural do município de Teresópolis, região serrana do Estado do Rio de Janeiro.

    Naquela época, a despeito da precariedade do meu vínculo empregatício – havia sido contratado temporariamente pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro – sobravam-me motivações e boas expectativas.

    Assim, naquele meu primeiro dia, entrei no meu 14-Bis – como carinhosamente minha mãe chamava o meu velho golzinho branco – dei a partida, e percorri os 15 quilômetros entre a casa de minha mãe e a escola, com orgulho. Não era pra menos, afinal de contas era professor de escola.

    Hoje, mais de dez anos depois, já não me recordo bem como foi aquele primeiro dia na minha primeira escola. Aqui devo reconhecer que resisti o quanto pude em acessar, recuperar e compartilhar essas memórias. Talvez isso seja algo revelador do quanto minhas experiências foram e continuam sendo desencantadoras.

    Contudo, ainda que quisesse, não pude esquecer o cenário das primeiras aulas que dei naquele dia. Lembro de uma sala de aula nos fundos da escola completamente tomada de alunos (Definitivamente a turma não cabia naquela sala!). Recordo que mal conseguia acessar o quadro de giz – uma parede pintada de cinza. Daí pra frente, melhor esquecer...!

    Poucas semanas após aquele primeiro encontro com o magistério real, um telegrama mudaria não apenas o meu tipo de vínculo profissional, mas também meu locus de exercício profissional.

    Aprovado e classificado no Concurso Público da Prefeitura de Rio das Ostras, realizado no final do ano de 2003, recebi a notícia da minha convocação. Assim, em um passe de mágica, fui transformado de um mero professor temporário para um professor efetivo.

“Aos dezenove dias do mês de abril de 2004, perante o Sr. Secretário Municipal de Administração Marcelo Chebor da Costa”, compareci para tomar posse do cargo de professor de História, no quadro permanente de pessoal do magistério da Secretaria Municipal de Educação de Rio das Ostras.

    Porém, a realidade que vi, conheci e senti pela primeira vez com olhos, a cabeça e a pele de professor naquela escola agrícola pública da zona rural do município de Teresópolis, não se diferenciava radicalmente da que enfrentei nos anos que atuei no Colégio Municipal Professora América Abdalla, em Nova Esperança, no Centro de Rio das Ostras, na Região dos Lagos do Rio. Aquela “nova esperança”, cedo, se revelaria vã.

    Nesses meus mais de dez anos de docência, outras experiências, em outros lugares continuariam a me frustrar. Por isso, diariamente, me questiono se há algo para além da oportunidade de trabalho, de um salário, da estabilidade profissional, que, ainda me anime a ser um professor de escola. Porque, embora tais motivações sejam razoáveis, ainda mais considerando o cenário atual, não são suficientes pra me manter vivo por muito mais tempo nesse ofício.

    Não sei se aqui dentro de mim, ainda nutro a expectativa de um horizonte mais generoso (Não seria menos perverso?). O que sei é que sinto um sincero desejo de que, em breve, esse singelo Memorial se converta em uma carta de despedida do magistério.

    Estive por dois anos em Rio das Ostras.4 E, a despeito da longa viagem que fazia todas as semanas para ir trabalhar – viagens essas que consumiam boa parte do meu tempo e salário – tenho ao menos uma boa recordação de lá. A amizade e a cumplicidade com os/as professores/as daquele lugar foi algo que me marcou profundamente.

    Após minha curta experiência em Teresópolis como professor temporário no Centro Interescolar de Agropecuária José Francisco Lippi, em 2006, voltei a dar aulas naquele município. Agora, como professor concursado.

    Nos atuais dias, integro o quadro permanente de pessoal do magistério da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro e da Secretaria Municipal de Educação de Teresópolis.

    Em 2003, como requisito para obtenção do Grau de Bacharel, apresentei ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense um trabalho monográfico de conclusão de curso, intitulado “Breve história de Teresópolis: tropas de muares, locomotivas e automóveis”5. Nas páginas introdutórias daquele trabalho escrevi:

 

Seria possível pensarmos como “cidadãos” sem ao longo de nossa presença na escola termos travados nenhum tipo de discussão sobre a cidade que nascemos e ou vivemos? Essa interessantíssima questão proposta no decorrer de uma aula de Prática de Ensino despertou em mim uma curiosidade a muito adormecida. Com muito pesar devo reconhecer que não consigo me lembrar de um único dia, ao longo de toda minha trajetória na escola, que tenha ouvido ao menos uma palavra sobre a história da minha cidade. Não por acaso Haroldo Lisboa da Cunha referiu-se em 1959 à Teresópolis da seguinte maneira: essa eterna e deliciosa desconhecida.

 

    Após todo esse rodeio enunciei com precisão a minha não modesta pretensão com aquele estudo, a saber, a de tornar a história daquela cidade acessível a todos os seus cidadãos. É evidente que, além de mim e de minha orientadora, ninguém mais leu aquela monografia.

    Em 2010, após ler uma matéria no jornal “O Globo” que divulgava o lançamento do livro intitulado “Arte Ambiente Cidade: Rio de Janeiro”6 lembrei-me de minha antiga pretensão. Desse modo, nasceu uma experiência pedagógica que chamei de “Projeto História na Rua: Um encontro ativo e crítico com a história de Teresópolis nas ruas da cidade a partir de alguns dos seus ‘personagens de bronze’”.

    No contexto do referido projeto um grupo de estudantes7 do nono ano do ensino fundamental participou de uma estranha aula de história. Estranha, pois não havia ali, como de costume, livros, carteiras, quadro branco, sala de aula. Ou melhor, a sala de aula era a cidade e seus personagens “de bronze” (monumentos) e de carne e osso eram os “livros” que deveriam ser lidos.

    Aquela inesquecível experiência educativa, que, teve como pretexto a história de Teresópolis, na verdade, buscou a superação de uma indisfarçável indiferença coletiva em relação à realidade do lugar onde vivemos.

    Surpreendentemente, ao contrário da minha monografia, o “História na Rua” teve alguma audiência, especialmente, após sua inscrição na primeira edição do projeto “Fazer-se Professor”8 promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Teresópolis (SME) e sua posterior publicação no livro intitulado “Fazer-se Professor, Cardápio de projetos: Experiências Inovadoras”.

    Em razão disso, dias após a sua publicação, fui convidado pelo então chefe da divisão de educação do campo da SME, professor Alex Siqueira Wey, para compor a equipe encarregada de aperfeiçoar as apostilas do projeto “Cenário Verde”9 (Edição 2011).

    Em meio à realização daquele trabalho, a Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro viveu um terrível pesadelo, noticiado assim pelo jornal “O Globo” (Caderno Especial – “Tragédia na Serra”) do dia 13 de janeiro de 2011:

 

A Região Serrana do Rio amanheceu ontem mergulhada em lágrimas. Castigadas por chuvas torrenciais durante a noite de anteontem e a madrugada de ontem, as cidades de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis contabilizaram 271 mortos, número que pode aumentar, já que ainda há pessoas desaparecidas sob montes de lama e escombros.

 

    Poucas semanas depois, apenas em Teresópolis, o número oficial de mortos chegava a 392.

    As consequências daquela tragédia aliadas às leituras que deram base ao meu “Plano de Aula: Proposta Educativa para a Disciplina História”, contido na “Apostila Multidisciplinar” distribuída pela SME despertaram meu interesse pela temática ambiental e pela educação ambiental.

    Desde então, dioturnamente tenho denunciado aos meus alunos as muitas tragédias socioambientais do nosso município – a falta de um hospital público municipal, o reduzido número de vagas nas poucas creches municipais, a precariedade do transporte público, a inexistência de um sistema de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequada dos esgotos sanitários, o uso indiscriminado e abusivo de agrotóxicos na zona rural do município, a ocupação das áreas de risco, o aumento da pobreza, entre outras – e compartilhado com eles um sonho que ainda tenho sonhado: o de uma outra sociedade, uma sociedade sustentável, igualitária, justa e feliz.

 

1 ANDRADE, Everardo Paiva de. Mais História e ainda mais docência: por uma epistemologia da prática docente no Ensino de História. 2001. 211 fls. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2001.

2 Conforme reportagem publicada no sítio <www.educacaopublica.rj.gov.br>, o Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho é a mais antiga escola de professores do país.

 

3 Para os interessados em conhecer um pouco da história dessa escola, sugerimos a leitura da seção 3.3.1 da dissertação de mestrado de Cláudia Maria da Silva Fortes, intitulada “Formação do técnico em agropecuária do Centro Interescolar de Agropecuária José Francisco Lippi” e disponível em: <http://www.ia.ufrrj.br/ppgea/dissertacao/Claudia%20Maria%20da%20Silva%20....

 

4 A partir do ano de 2005, também por via de aprovação e classificação em Concurso Público, passei a atuar na rede municipal de educação de Itaboraí, região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (Deste modo, em pouco menos de dois anos após minha formatura, já tinha minha segunda matrícula no serviço público). Como, no ano seguinte, ingressei no quadro permanente de pessoal do magistério da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, foi preciso deixar Rio das Ostras.

5 MAGALHÃES, Luciano Coelho de. Breve história de Teresópolis: tropas de muares,locomotivas e automóveis. 2003. Monografia (Graduação) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2003.

6 VARZEA, Mariana, AINBINDER, Roberto. Arte Ambiente Cidade: Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Uiti, 2010.

7 Nota-se que minha ambição havia murchado. É que, naquela altura, minha experiência profissional não me deixava sonhar com nada além de um punhado de alunos.

8 Instituído em 2010, o projeto “Fazer-se Professor” busca reconhecer e incentivar o desenvolvimento de práticas bem-sucedidas nas escolas da rede pública municipal. Tal iniciativa está associada à divulgação das experiências exitosas em uma publicação.

9 A SME, em parceria com o Parque Nacional da Serra dos Órgãos desenvolve desde 2009 o projeto “Cenário Verde”, trata-se de uma proposta de visitação àquela Unidade de Conservação de Proteção Integral. Prevista na metodologia encontra-se uma visita de campo por parte dos professores inscritos e a distribuição de apostilas contendo sugestões de conteúdos e atividades relacionadas às diferentes disciplinas.

 

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