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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Josiane Nazaré Peçanha de Sozua
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 03/01/2018
Sumário

Josiane Nazaré Peçanha de Souza participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

 

 

A CONSTRUÇÃO DE UMA PROFESSORA NEGRA: O RACISMO ME DEFINIU”

 

 

A gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se NEGRA é uma consquista.”

Lélia Gonzales

 

    Introdução:

Este livro pretende contar, diacronicamente, com reflexões anacromáticas, através de um memorial, várias passagens de minha vida. Passagens que mostram, nestes trinta e sete anos, o quanto o Racismo tem interferido em minha identidade, em minha “psique” e em meu destino, em como cada forma de Racismo e outros preconceitos, se fizeram presentes na construção de minha história de vida, de minha história pessoal e como deixou marcas profundas em minha identidade de modo plural e de minha identidade racial de modo singular.

Em como que o Racismo, em grande parte o Institucional, foi traçando o meu caminho para o Magistério!

Este relato de vida veio se desenhando a mais ou menos um ano e ganhou mais um motivo de se concretizar com o desafio do professor Everardo e o professor Marcos, de História do Ensino de História, da UFF, que me proporcionam enorme felicidade e orgulho em presenciar suas aulas, que me tiram a voz ao fazer meu pensamento flutuar. Nesta caminhada que me encontro, de grande orgulho, mestranda em história pela UERJ: a primeira da minha família, tanto por parte do pai, quanto da mãe, a fazer mestrado! Também fui a primeira a fazer graduação!

Quem sabe com estas histórias aqui narradas aprendam, todos os leitores, que os privilégios da ‘branquitude’, que poucos gozam neste país nos inferiorizam, nos invisibilizam e nos cerceam enquanto negras/os e percebam que, o Racismo é uma realidade que existe e que mata, tanto simbólica quanto fisicamente, milhares de negras e negros, nas mais diversas situações e círculos da vida cotidiana.

A cada narrativa serão tecidos conceitos que tangem as relações étnico-raciais presenciadas no cotidiano, tanto privado, como da rua, como nos espaços de convívio institucional. Narrarei desde o nascimento até a vida adulta, vários casos de racismo, tanto velado, quanto explícito, quanto institucional e outros. Inclusive outras formas de preconceitos e violências.

Cada época será ladeada com uma fotografia, que servirá para o leitor poder se reportar a cada época histórico-social e cultural narrada.

Se espera mostrar como a categoria ‘destino’ se aplica a apenas um mínimo grupo privilegiado em nossa realidade brasileira e como a história tem potencial de ser mestra da vida, principalmente para mim. E como todos os casos de Racismo e outros preconceitos me define e definiu como eu sou.

E a negra ‘insolente ’veio ao mundo...

Era uma noite chuvosa de treze de maio de setenta e nove... estava passando da hora...

Então minha mãe, devota de Nossa Senhora de Nazaré, fez uma promessa para ela: que caso aparecesse um médico para fazer o meu parto, me daria o nome dela...Nazaré! E em minutos apareceu um médico: loiro, de olhos azuis, parecia a figura eurocêntrica de um anjo, que nunca tinha visto e fez meu parto, que foi normal.

Nasci bem “roxinha”, pois realmente estava passando da hora. Muito grande e bem pretinha! A minha mãe é negra com uma tonalidade bem clara e meu pai é também mais claro que eu. Eu era bem mais pretinha que os dois e assim começa a minha história.

Primeira marca de preconceito.... Será que foi?

Minha mãe saiu comigo para uma consulta de rotina de médico pediatra. Chegando no posto todos nos olharam... Todos ficaram me elogiando, falando que era uma bebezinha muito bonita. Até que se aproximou uma senhora branca e falou para a minha mãe:

_ Ela é tão bonitinha! Linda mesmo! Mas quando você pegar uma criança pra criar, pega uma da sua cor!”

A minha mãe ficou tão indignada com esta fala que deu várias “sombrinhadas” na senhora, pois era um dia chuvoso, e a xingou de todos os nomes....

Será que este foi o primeiro caso de preconceito racial que experimentei na vida...ainda bebê?

E minha mãe...penso agora como ela se sentiu...muito confusa em seu pertencimento...

Na verdade, a figura de minha mãe, para mim, é de uma pessoa que sofre muito devido à sua identidade racial, pois ora a tratam como branca, ora a tratam como negra, quando convém por assim dizer: convêm aos interesses externos, extrínsecos de perpetuação do ‘status quo’, das diferenças em relação à cor de pele, aos lugares que experimentamos, ao ‘apartaid invisível ou dissimulado” do qual nós negros experimentamos cotidianamente em nossas vidas, desde que nascemos...

Acredito que nós negros temos que ter muita atenção para com nossos irmãos que possuem uma tonalidade de pele mais clara, pois vejo que o “Embranquecimento” que experimentam, na pele, faz muito mal a eles, pois como conosco, também mexe com o psicológico deles, é algo muito cruel também!

E penso hoje, o quanto esta diferença que foi plantada entre nós, mãe e filha, nos foi afastando gradativamente nos meandros destas nossas vidas...penso agora o quanto isto ajudou a nos separar... Visto que a fizeram pensar diferente de mim em seu íntimo??? Será que conseguiram introjetar na sua cabeça, que não somos iguais? Isto eu não posso precisar...

A figura de minha mãe...

A minha mãe é negra. Sim, ela é. Mas ela não se reconhecia assim desde cedo não, não que eu me lembre.

Lembro dela, na minha infância, tratada como branca: ela tem a pele bem clara, ela dizia e diz às vezes, que é amarela, que tem cor de “peido engarrafado”! E ela falava isso rindo e eu criança ficava imaginando, o que seria isso? Ela tem os cabelos mais crespos que os meus e tem os olhos azuis esverdeados...

Lembro dela sendo tratada como branca principalmente pela família de meu pai. Eles a viam de modo estranho e isso se refletia um pouco para gente. Eles são bem negros, são de Silva Jardim. Minha mãe não gostava muito de ir lá e, por isso, a gente também não gostava de ver meu avô, a minha avó tinha criado meu pai uma época, mais era torta, era a madrasta dele. A minha avó paterna de verdade abandonou meu pai quando ele tinha meses de vida, então ainda não conheci. Eles eram do Candomblé e a minha mãe, católica. A relação entre as famílias estava marcada pelas diferenças de etnia, minha mãe era já uma negra ‘catequizada’, que repudiava aquela religião, mas nunca ouvi a mesma falando da religião afrobrasileira de modo negativo. No entanto havia este distanciamento desnecessário sim no ar... Para mim, agora, à luz das teorias racialistas que tenho, vejo que o distanciamento era muito produto do Embranquecimento que ambas as partes tinham experimentado: a minha mãe, tanto na pele, como na alma e a família do meu pai que se via em uma pretensa inferioridade à minha mãe, “por ser branca”.

Na relação mãe e filha, comigo, eu não lembro que aconteceram beijos e abraços na minha infância... Me esforço para lembrar e não lembro. Não era algo corriqueiro não. Só lembro de beijo e abraços quando eu fiquei doente, com nove anos, com problemas nos rins. Fiquei internada uns três dias. Neste momento eu lembro que ela me beijou, abraçou muito e chorou. E quando cheguei em casa, minha irmã me contou que ela sentiu muita falta de mim, que chorou e abraçou o meu “Fofão”, meu boneco preferido na infância.

Na infância, a nossa relação foi assim....

 A primeira cusparada por ser quem eu era...

       Quando estava com uns cinco anos, meu pai conseguiu um emprego de zelador em nossa cidade Natal, em Rio Bonito! Morávamos num dos prédios mais badalados da ‘rua’: é assim que os rio-bonitenses chamam o centro da cidade. Era badalado pois tinham boutiques chics, um restaurante que tinham apresentações de pessoas famosas: já tinham se apresentado Biafra e Tetê Espindola.

Estamos subindo as escadas de nosso prédio, minha mãe tinha vindo à frente. E minha irmã corríamos atrás. Estávamos nos recuperando de uma catapora. Quando no caminho, quase chegando ao andar em que morávamos, que era o último, uma menina, por volta de também cinco anos, que estava no parapeito da escada, olhou para a gente e disse:

_ Que nojo! Eca! _ E cuspiu muito na gente! Muito! A minha irmã começou a chorar, eu gritei pra ela sair e a menina, branca e loira, saiu correndo... e fui levando minha irmã.

No caminho, exatamente no corredor do prédio, que tinha uma imensa varanda, nos encontramos a mãe da menina. E eu contei para ela porque Denise, minha irmã, estava chorando, o que a sua filha tinha feito conosco. A mãe nos pediu desculpas, deu um beliscão na menina e mandou que a mesma nos pedisse desculpas. A menina nos olhou com ódio e gritou para a mãe que não iria! A mãe perguntou porque ela tinha feito aquilo, ela fez cara de nojo e quando a mãe a forçou a nos beijar, começou a chorar, compulsivamente e saiu correndo. A senhora constrangida pediu desculpas pelo fato e saiu...

Quando chegamos em casa, a minha mãe perguntou o que aconteceu e sabendo, falou para o meu pai, que saiu de casa... o restante eu não consigo recordar...só tinha uns cinco anos... mas como isto ficou marcado em minha memória...

O que pensar diante desta situação? Foi nojo da doença que estávamos nos recuperando ou foi nojo da gente? Da nossa cor? De quem éramos?

A verdade que complementa esta situação é que, algumas vezes descíamos para o corredor e quando tinham crianças brincando parecíamos invisíveis...tanto, que minha mãe ou meus tios, que às vezes tomavam conta da gente, sempre davam um jeito para nos levar para brincar na praça de Rio Bonito, que era em frente ao Prédio praticamente... este para mim foi o primeiro aprendizado de invisibilidade negra...

    O primeiro racismo institucional a gente nunca esquece...

Tinha sete anos, estava na segunda série, atual terceiro ano da Educação Básica. O nome de minha professora era Wilma, que Deus à tenha ou não...

Era aula de história, e ela estava ensinando sobre a História do “Descobrimento do Brasil”... e foi assim...

_Em 1.500, as naus da Caravana da Coroa Portuguesa, Maria, Pinta e Nina, atracaram nas praias do que se chamaria Brasil, anos mais tarde...

Estavam: Pedro Álvares Cabral, o grande descobridor e seu escriba, Pero Vaz e Caminha.

Depois de muito navegarem pelo perigoso e misteriosos sete mares, de Portugal, até o Brasil, veja o mapa de vocês (apontou para o papel borrado de carbex, com um mapa-mundi) ...

_Aqui estavam cheios de selvagens, nus, onde já se viu? Enquanto eles estavam pomposamente vestidos! Ao qual chamaram de índios. Deram-lhes penas e espelhos de presentes, para fazerem os primeiros contatos!” (Tinha um livro didático com uma pintura que representava este encontro)... E depois de mais algumas informações, concluiu, com a turma em absoluto silêncio, sua exposição oral.

Eu levantei a mão para perguntar... E ouvi um comentário:

_Lá vem Josiane Peçanha fazer mais perguntas... o que foi garota? – Eu perguntei com a mão no queixo..._

_ Que estranho professora... eles chegaram aqui certinho? Sem mapa? Eles já não sabiam que aqui tinham terras, não? Porque olha o monte de gente que já tinha aqui? Estou achando isso tudo aí muito estranho...- ela rebateu-

_ Olha só! Só podia ser Josiane Peçanha! Essa negrinha se acha melhor que o Grande Cristovão Colombo e Pedro Álvares Cabral! Quanto abuso menina! Quem você pensa que é? Uma filha de doméstica com um segurança! Onde já se viu?”

Anos mais tarde, fazendo o curso “Africanidades- Brasil”, pela UnB, com a parceria do Governo Federal, descobri que estava completamente certa, pois os fenícios e os egípcios, milênios mais cedo, tinham feito com suas embarcações esta mesma trajetória pelos mares e oceanos e chegado aqui no Brasil.

Este foi o primeiro racismo institucional velado que eu senti, pois me rotulava como incompetente em minhas resoluções apenas por ser quem eu era, uma criança negra e pobre. A absoluta falta de respeito ao olhar do aluno, pela professora, sem dúvida também é resquícios de seus preconceitos socioeconômicos, visto que minha mãe já tinha trabalhado em sua casa. E também pela escolha de sua concepção tradicional de ensino, em que o aluno não pode questionar: o posicionamento teórico-metodológico tradicional.

Esta história mostra para mim que já tinha o ensino de história na veia e, apesar do processo de ensino-aprendizagem completamente inflexível, adotado pela escola, eu consegui desenvolver um olhar crítico e bastante maduro para a idade que eu tinha. Este episódio também me ensinou o quanto é importante considerar e valorizar os questionamentos críticos dos alunos, seus conhecimentos e saberes, sua realidade, para potencializar novas construções e olhares curriculares, neste caso, sobre história, para garantir ‘inteligibilidade’ por parte dos alunos, dos conteúdos a serem ensinados, conforme li e refleti com Ana Maria Monteiro (2010- 2007)

    Preconceitos velados e dissimulações em outros espaços escolares e não escolares de convívio:

Agora já estou com onze ou doze anos. Me mudei para Niterói, na Rua Martins Torres, no Condomínio Bruno César. Um prédio de classe média suburbana. Meu pai era zelador novamente, esse prédio era também simples, mas tinha sua visibilidade e importância no bairro. Era um prédio estratégico do micro-bairro de Santa Rosa: a maioria dos adolescentes e crianças de minha escola, a Escola Estadual São Domingos Sávio, gostariam de morar lá! Os alunos desta escola, quase todos pretos como eu, moravam nos morros e favelas vizinhos: Cavalão, morro da rua D, morro do Atalaia e o morro atrás do meu prédio, o ...

Na escola passei por vários preconceitos: primeiro me estranharam e me bullyinaram muito devido meu uniforme, pois fui com o que usava no interior: saia prensada, blusa do estado com o emblema gigante no peito, meia branca na canela e sapato preto. Me sacaneraram muito! Também fui muito maltratada por ter destaque no grupo: dominava facilmente todos os conteúdos dados pelos professores, era a antiga quarta série, já tinha aprendido tudo em Rio Bonito na terceira série. Para piorar os professores me adoraram de cara! Roubavam muito meus pertences ... E morava em prédio, achavam que era rica. Uma menina, que andava em trio, de nome Teresa uma vez quis me navalhar por conta disso... foi um momento de grande tensão para mim. Ainda bem que contei para o meu pai que, para o azar dela, era amigo do meu pai: ela levou uma coça!

Neste período de solidão pensei em me matar, tentei enterrar um facão no meu peito, acordei cedo, fui para cozinha e mirei para a direção do coração! Não estava aguentando mais tanta tristeza, tanta solidão, sem amizade na escola! Minha mãe estava se recuperando do mioma, muitas vezes acordada cedo para lavar as toalhas com sangue vivo, blocos e mais blocos, que ficavam nelas! E a via passando muito mal. Meu pai estava se matando de trabalhar no prédio para poder ficar. Minha irmã não entendia nada, era muito criança! Tinha perdido a natureza exuberante que tinha feito parte da minha vida até então! Subia em árvores e andava em rios e pelos matos em Rio Bonito com primos e amigas! Agora via telhas cinzas para todos os lados! Não consegui concretizar o crime. Parei e chorei ajoelhada! Chorei muito! Desta tristeza caí doente... doente de saudade de toda a liberdade que tinha em Rio Bonito... dos amigos, da escola...Disso apareceu meu problema no coração...sopro, que precisou ser tratado e acompanhado! Será que sofri de ‘banzo’?

Depois deste período muito conturbado, fiz amizade com algumas meninas na escola: Elisângela, Graziela, Danielle, Micheli, Lindinalva, Iranir e Emanuela. Todas moravam nas ruas e favelas no entorno da escola! Erámos muito amigas, principalmente eu, com Micheli e Emanuela, em que somos amigas até hoje! Deste período em diante a tristeza passou!

Também tinha feito amigos no prédio: por lá, tinha a Daniela e a Fabíola! Eram as minhas amigas inseparáveis, mas as duas não se entediam muito bem não...sempre se desentendiam! A Tatiana, a irmã de Daniela, era quase da minha idade, mas já namorava. Eu não, eu era criançona, brincava ainda de boneca, Então ela não conversava comigo. Ficava namorando os garotos com a Kátia, a outra menina dois anos mais velha e que morava num casaril quase em frente. Paqueravam os gêmeos do prédio quase em frente ao nosso, que parecia com o Axl Rose. Todas achavam eles os gatos do bairro! Eram o Bruno e o Diego.

Brincávamos muito: eu, Denise, Fabíola e Daniela! Todos no prédio e os citados de classe média, eram brancos, nós éramos a única família negra do prédio.

No dia em que chegou a família de Jaime, que eram: a mães e os dois filhos, um adolescente de treze anos e uma menina de nove anos, que eu conheci o que era racismo.

Eles fingiam que não estávamos ali... Não conversavam conosco e ouvia os dois pedindo para os outros não conversarem conosco. Lembro que a Juliana falava para a Danielle não brincar com a gente. Quando questionada porque, disse sem cerimônia que era porque éramos negras e pobres, que só tínhamos brinquedos muito ruins, de plásticos duros. Nos jogos que sempre todos brincavam conosco passaram a não nos deixar brincar. Os dois, principalmente o Jaime, dizia que a gente não conseguiria brincar, “claro que elas não conseguem ganhar, olha como são”, mas alguns colegas falavam que eu era também uma boa jogadora de totó e ping pong. E uma vez ele disse que eu nem estudava, foi quando respondi que já estava na 8ª série com treze anos e o outro colega riu dele pois eu estava mais adiantada que ele. Ele rebateu dizendo que eu estava estudando num colégio muito fácil; “Também, no Baltazar Bernardino!” E convidou todo mundo para ir brincar no apartamento dele, de vídeo game, somente para eles não brincarem conosco. Eu ouvia aquilo e realmente não compreendia porque ele falava isso da gente! E fiquei muito triste, fui para casa e chorei.

Então eu conversei com o meu pai, que me disse que eles eram crianças ruins. Eu perguntei porque eram ruins conosco, pois não tínhamos feito nada com eles. Meu pai disse que tem gente que não gosta de preto, mas ele iria resolver isso. Foi um dia muito difícil para mim. Tinha treze anos e passei a ser uma criança triste novamente., pensava e não conseguia entender isso e confesso que até hoje eu não compreendo.

O jogo que este Jaime mais gostava era o totó. Ele ganhava todo mundo, sempre ficava ridicularizando seus oponentes depois que os derrotavam. Meu pai o desafiou. E ele logo disse que não teria a menor chance. Neste dia todas as crianças do prédio ficaram em volta do totó. Todas as crianças estavam torcendo para o meu pai ganhar o desafio.... Meu pai ganhou! Parecia Copa do Mundo com a seleção campeã. Então meu pai falou para ele:

_ Isso é para você aprender que não existi isso de uma pessoa ser melhor que a outra por ter a cor que tem! E eu não quero ver você fazendo isso mais, de deixar minhas filhas de fora das brincadeiras! Deixa todo mundo brincar! E aprenda a ganhar e a perder! ”

Todos que viram gostaram e ele e sua irmã, diminuiram as demonstrações de preconceitos! E todos os colegas do prédio passaram a brincar conosco. Inclusive a menina que mais tinham brinquedos diversos, a Fabíola, passou a querer brincar apenas conosco e dizia para a irmã deste menino, a Juliana, que era para ela aprender a não ser tão preconceituosa e que as melhores amigas dela éramos nós, não ela! A Fabíola também foi um exemplo de como nem todos os brancos são racistas e que juntos com estes brancos podemos derrotar o Racismo!

Este foi o primeiro episódio que eu passei na adolescência de racismo mesmo, que senti na pele que fui discriminada, invisibilizadas e silenciada por ter a pele escura. Percebi neste episódio o quanto é importante termos uma família com pertencimento negro para nos ajudar a enfrentar estas situações, na figura de meu pai e que ter brancos não racistas de nosso lado também é de suma importância, aprendi que os negros devem ser unidos para enfrentarem estas situações de preconceito racial em nossa sociedade brasileira.

     Racismo na Família, um episódio à parte...

Nesta mesma época da situação na escola e no prédio em que morava, em Niterói, neste período em que tinha entre doze e treze anos, eu sempre passava dias e férias em Rio Bonito, como sabem, minha cidade natal...

Lá passava os dias com minha família ampliada, consanguínea: meu avó materno, meus tios, meus primos, minha tia avó...

Esta situação aconteceu com minha tia avó, o nome dela é “Deuzinha”, tem como nome Maria Deuza. Ela é uma senhora de altura mediana, com cor negra, mais numa tonalidade bem clara, o que o IBGE conceitua como parda. Ela era fruto de envolvimento de minha bisavô com o dono de uma fazenda em Campos, com pele clara, na cidade origem de nossa família e minha bisavó, que minha mãe falava que era negra tinta! Sem dúvida um pouco do exemplo da teoria do Embranquecimento no Brasil.

Nossa família, a Peçanha, descende de Nilo Peçanha, que era o avó do meu avó. Meu avó era filho ‘bastardo’ de Rui Peçanha e o Celso Peçanha era primo de meu avó, o ex-governador do Estado do Rio. Ele deu até um livro para a família que conta toda a história e descendência inclusive de meu avó e sempre estava lá conosco em Rio Bonito.

Minha mãe conta que meu avô era tratado como ‘Sinhozinho’ na fazenda de seu pai, em Campos, ao qual passou a ser chamado de ‘Zizinho’, mas sua mãe era insultada pelos seus irmãos e a mulher do tal Rui Peçanha, meu Bisavô.

Quando meu avô fez dezoito anos ele se aborreceu e deixou tudo para trás, levando apenas sua mãe, minha bisavô, que era negra e a sua irmã, a “Deuzinha”.

A ‘Deuzinha’ então era a minha tia avó... E ainda está viva. O meu avó infelizmente já faleceu em mil novecentos de noventa e oito.

Um dia ela me ouviu conversando sobre o meu pertencimento: eu falava com orgulho que era negra numa conversa com meus primos, que não era ‘marrom bombom’ igual falava a música (da banda de Pagode ‘Os Morenos’), que eu era negra com orgulho! Minha tia ouviu isso e disse:

_ Não fala isso não! Você é moreninha! Você não é negra mesmo! Olha o seu cabelo, ele é bom! Olha os seus lábios e nariz, são finos! Seu rosto é lindo! Não, para com isso! É feio! Não se chame de negra não!

Eu rebati na hora:

_ Não tia! Ser negra não é feio! É o que sou! Sou negra! Passou de seis horas é noite! Sou negra com orgulho!

E acabou o assunto com ela saindo furiosa da varanda da casa dela para dentro.

Eu sei a preocupação dela, ela queria tirar de mim a marca que carrega a cor negra, a marca do racismo... que muitas vezes nos aniquila e persegue...

 

Escolhendo o curso que iria fazer no (antigo) 2º grau: o Racismo escolheu para mim:

Me mudei de bairro, fui para um prédio “super chic” na Moreira César, em Icaraí, no Icaraí Flat Service, agora morava entre os ricos e famosos, alguns jogadores do São Paulo, inclusive, foram lá em casa e eu peguei autógrafos. Neste prédio curiosamente, só percebi racismo uma vez, quando uma senhora idosa, milionária, na época, dona do Jornal “O Fluminense”, nos encontrou no elevador social e tapou a respiração até chegar em sua cobertura. Quase morreu de tão roxa que ficou, ela morava no vigésimo andar, e nós morávamos no vigésimo primeiro andar. Mas neste dia eu não fiquei triste com isso, eu quase morri de tanto rir dela, quando cheguei em casa. Estavam eu, minha irmã e minha mãe. Rimos muito mesmo!

Estava na oitava série, em outra escola em Niterói. Era o Colégio Estadual Baltazar Bernardino. A escola parecia uma escola do ‘Brooking’, aquele gueto famoso dos Estados Unidos, pois era uma escola toda pichada, com gente sempre fumando maconha no banheiro. Gente às vezes, transando nas escadarias que eram mantidas trancafiadas, que davam para o pátio, sempre na hora do recreio e gente pichando a parede escondido nos intervalos... Era um clima bem pesado! A grande maioria dos alunos das turmas eram repetentes e tinham alunos de origens socioeconômicas diversas: alunos de vários morros e comunidades vizinhas, o que tornava a escola um barril de pólvora, quase sempre resultando em brigas no recreio e na saída e também tinha alunos vindos das escolas particulares nas redondezas, dos Salesianos, do São José, até do Abel, colocados lá pelos pais e responsáveis, como castigo, por mal comportamento e repetência dos filhos. E tinham também os alunos que eram como eu, filhos de zeladores, mas éramos poucos.

Não era para eu estudar lá, era para ter ido para o Colégio Municipal Manuel de Abreu, mas meu pais estava muito ocupado trabalhando e minha mãe estava muito acamada, mas o combinado era que os melhores alunos fossem para o MABREU e os demais irem para o Baltazar, mas ...dei azar!

Mesmo assim continuei meu caminho entre os melhores alunos da escola. E deixava nesta época o meu cabelo bem cacheado, bem volumoso. Eu não percebi na época, mas havia sempre uma fala que meu cabelo estava horrível, por estar bem “black power”. Eu não detinha estes conceitos, nem conhecimentos sobre negritude, mas eu sempre ouvia que estava feio, pois bem afro, bem volumoso. Foi quando pedi para a minha mãe fazer escovas nele, como o Michael Jackson. Eu era fã dele, muito. E todos começaram a falar que meu cabelo estava lindo...

Depois me aborreci em ter que fazer escovas, pois queima e dói.... Cheguei à conclusão que eu não tinha que fazer nada... E apesar das falas que o meu cabelo estava “feio” eu não liguei mais e falava para deixarem meu cabelo em paz, pois eu gostava dele assim.

No final deste ano, na oitava série, atual nono ano, tinha que decidir o que eu faria no segundo grau... Depois de ler bastante, decidi e fui contar feliz para a minha mãe:

- Mãe, decidi para onde eu irei fazer: vou fazer secretariado no Colégio Aurelino Leal!

Minha mãe falou contundente e segura:

- O quê? Você pirou? Onde você já viu uma secretária negra por estes lugares que nós andamos? Já viu uma secretária negra num consultório, por exemplo? Como você vai aprender línguas estrangeiras? Com que dinheiro? Negro só tem duas opções minha filha: ou é ser professora, ou é ser enfermeira! Ou você faz Curso Normal ou você faz Enfermagem! Faz Normal minha filha! O I.E.P.I.C. é aqui perto e você leva jeito para ser professora!

 

    Foi assim que o Racismo me definiu: o Racismo delimitou o que eu podia ser... Professora!

Fiquei em silêncio...Pensativa... e depois pensei: ‘Sim! Vamos lá ver o que vai dar isso!’ Não estava segura desta opção, mas fui fazer. Estudei para as provas de admissão, pois tinha uma prova para entrar no I.E.P.I.C. , eu passei e fui fazer, confesso desanimada...

No primeiro estágio me apaixonei! Realmente era aquele o meu caminho realmente! Vi no primeiro estágio que tinha dom para isso! Me saí melhor que as estagiárias que estavam para sair, do 3º ano. Fui bastante elogiada pelas professoras supervisoras do estágio e no magistério estou! Até hoje!

A minha mãe foi dura comigo, mas compreendo que ela quis me proteger...Proteger do Racismo que existe na sociedade e das dificuldades que me faria atravessar, caso escolhesse ser Secretária, diante de uma realidade brasileira para o negro brasileiro: de que há destinos premeditados e predeterminados para nós, pelo Racismo. Nesta situação fica explícita que para negros há poucos caminhos, inclusive dentro do imaginário dos próprios negros. Diante de tão poucas oportunidades dadas para nós negros, diante de um tratamento tão desigual, que escolhem e delimitam os nossos destinos.... Portanto “O destino não é a gente quem faz”, como reverbera o imaginário popular... Nós não “Colhemos o que plantamos”...Não mesmo! Para nós negros não!

Esta fala dela também influenciou na escolha para a graduação.... Continuei trilhando o magistério, pois cada vez percebo que era mesmo este o meu caminho. Agora por opção minha, por amor ao que escolhi, frente a ainda pouca mobilidade socioeconômica que experimento, após fazer e passar em vários concursos públicos e receber uma gratificação significativa que me dá uma vida mais confortável que os meus pais!

Tinham mais histórias para contar, principalmente o que me levou a escolher fazer mestrado em História, que também tem outras marcas de Racismo, muito mais cruéis inclusive, pois ocorridas no trabalho, dentro do magistério em espaços públicos, mas esta será em outra viagem diacrônica, esta acaba por aqui!

Infelizmente, ainda hoje no Brasil, teimam em imprimir um lugar para o negro, um lugar para a mulher negra, que deve ser de contemplamento frente à branquitude e isso se fez presente em todo o momento na minha vida. Ainda existe este Brasil que mantem o mito da Democracia Racial, numa construção mentirosa de cordialidade de convívio entre as raças. Eu nunca quis aceitar isso, sempre questionei e sempre questiono, sempre me coloquei e me coloco contra, por isso sempre sou rotulada como metida, insolente e agressiva, conceitos que nos rotulam visivelmente como herança e parte deste Racismo à brasileira, que é Estrutural (dentro da política legal), Institucional (se faz presente nos lugares e rótulos dados aos negros, dentro das organizações e instituições públicas e privadas, dentro da sociedade como um todo) e Científico (nos classificando como inferiores numa escala biológica errônea e equivocada, pois puramente ideológica), mas eu nunca me curvei ou me curvarei à isto! E não me arrependo nem um pouco da minha coragem, do meu pertencimento negro e de minha trajetória nesta vida!

Não me faz recuar cada Racismo que passei e passo, pelo contrário, cada dia fico mais forte e destemida, isto me fez tornar o que sou: uma mulher negra professora com o mais profundo orgulho por ser quem sou! Que sempre procura levar este mesmo orgulho para o meus filhos, sobrinhos e nesta narrativa educativa, para os alunos que tenho, ao desenvolver projetos educativos exaltando a nossa Raça! Mas esta é uma outra história...

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LÉLIA GONZALEZ - ENTREVISTA À REVISTA SEAF, REPUBLICADA EM UAPÊ REVISTA DE CULTURA N.º 2 – “EM CANTOS DO BRASIL” A DEMOCRACIA RACIAL: UMA MILITÂNCIA.

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