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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Flávio Braga Mota
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 03/01/2018
Sumário

Flavio Braga Mota participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

Memorial

Talvez esse memorial não tenha tido hora tão oportuna de ser escrito. Diante de um panorama que se desenha cada vez mais desafiador para os profissionais da educação, nada melhor que ter a oportunidade de contarmos um pouco de nossas trajetórias pessoais e experiências profissionais uns para os outros. Quem sabe assim nos fortalecemos para resistir frente a um quadro que se mostra bem desfavorável e desanimador para quem faz do magistério seu ofício. E inserido nesse contexto, conto minha trajetória profissional, querendo fazer coro à causa da educação pública de qualidade, que muitos sacrificam sua saúde para que as crianças e jovens de nosso país possam ter força, sabedoria, coragem e ousadia de ser aquela geração que, enfim, mudará o mundo.

Nasci no Rio de Janeiro, fruto, de certa forma, do canto da sereia do Eldorado da "cidade grande": minha mãe, natural de Minas Gerais, veio, na década de 1970, para o Rio de Janeiro, onde trabalhou por mais de 30 anos num consultório pediátrico; meu pai, carioca e hoje prestes a se aposentar como professor de Educação Física, é filho de sergipanos. Tenho também dois irmãos: uma irmã mais nova e um meio-irmão temporão por parte de pai.

Cresci num ambiente em que figuras centrais na minha vida sempre me deram grande apoio aos estudos: quando pequeno, antes da separação de meus pais, via que meu pai era leitor voraz, pela quantidade de livros e gibis que ele tinha em casa e que eu o via lendo; minha mãe, mesmo com menor formação acadêmica que meu pai, a todo momento me falava sobre a importância dos estudos e sempre que podia me dava livros de presente ao invés de brinquedos; meu avô paterno, a quem tive como "um pai mais do que meu pai", mesmo analfabeto, criou quatro filhos que hoje, pelo menos, tem emprego público e/ou uma graduação - e isso para quem era analfabeto era fruto de grande orgulho - além de, até seus últimos dias, me perguntar "como estão os meus estudos".

Minha infância, se não foi rica no sentido material, foi rica em incentivos e estímulos para eu ter coragem e vontade de fazer o que eu quisesse da minha vida e sempre escutei, principalmente de minha mãe e de meu avô paterno, que os estudos poderiam abrir possibilidades que iriam além do meu horizonte de imaginação. Então crescer aprendendo a gostar de estudar, de aprender coisas novas e, tão importante quanto isso, crescer com o discurso de que a educação é fundamental (mesmo que com seis, sete anos, ninguém vá entender exatamente o que é isso) foi o meu primeiro estímulo a tratar os estudos de forma bem séria.

Minha vida acadêmica teria desdobramentos diferentes se eu não tivesse estudado dos meus seis aos 18 anos no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Melhor, provavelmente eu não teria "vida acadêmica" para contar. O já centenário ISERJ é uma das escolas públicas mais tradicionais do Rio de Janeiro e um dos lugares mais democráticos por onde passei: lá pude conviver com pessoas de origens, poder aquisitivo, religiões, ideologias diferentes das minhas durante todo o tempo em que lá estudei e acredito que isso foi um dos maiores presentes que pude ter durante esses anos de Educação Básica. O aprendizado em conviver com o diferente que o ISERJ me deu influenciou diversos campos da minha vida, inclusive na minha escolha pelo magistério.

Infelizmente, não tive professores de História que me enchessem de entusiasmo, mas sempre gostei da matéria na escola. Lembro que, na minha passagem pelo Ensino Médio, eu tive que fazer uma "escolha de Sofia": por falta de condições de comprar todos os livros didáticos, preferi comprar os de disciplinas que eu tinha mais dificuldades, como Matemática e Química. História sempre foi uma das disciplinas que eu sempre gostei e tinha bom rendimento, apesar de, muitas vezes, não simpatizar muito com os professores e suas práticas pedagógicas. Mas eu era aluno tão bom em História que eu, não raro, me dava o direito de faltar os dias que tinha suas aulas.

Mas voltando aos professores. Tive muitos professores ótimos no Ensino Básico, mas o professor que me fez parar para pensar pela primeira vez em seguir carreira no magistério foi meu professor de Geografia nas antigas sétima e oitava séries (atuais oitavo e nono anos), Antonio Cláudio Menezes. Professor Antonio (a quem hoje chamo carinhosamente de "Mestre" todas as vezes que falo com ele, para mostrar toda a reverência e a importância que ele tem e teve para mim) tinha algo de diferente no trato com os alunos. Ele nunca teve aquele ar de superioridade que muitos de nós, professores, temos com nossos alunos. Suas aulas eram divertidas, leves, muitas vezes beiravam a papos informais, mas eram altamente educativas, informativas e que me fizeram, cada vez mais, a pensar na minha condição enquanto ator social. E foi vendo ele conduzindo suas aulas e nos fazendo pensar no mundo a nossa volta que me questionei, pela primeira vez, se o magistério seria um caminho profissional que eu poderia levar em consideração. Mas eu tinha uma grande barreira a vencer para ser professor - ainda mais um grande professor como professor Antonio -, e essa barreira era minha timidez.

A minha timidez era (ainda é, mas em doses homeopáticas), ao mesmo tempo uma dádiva e um drama. Dádiva pois a introspecção que a timidez me deu ajudou bastante no meu autoconhecimento, inclusive quando senti que era hora de tratar da timidez e ter consultas semanais com uma psicóloga, o que ocorreu por quatro anos ininterruptos. Drama porque era algo que não me deixava aproveitar ao máximo o potencial que eu acreditava ter. Então, como disse, graças ao tratamento psicológico, aquela timidez extrema que eu tinha foi, aos poucos, substituída por uma timidez mais branda, que ainda me coloca em alguns apuros, mas que hoje é algo contornável.

Ainda com a timidez excessiva em tratamento (com Dorothéa, a psicóloga, uma senhora dócil e gentil -mas que dormia de vez em quando eu falava dos meus apuros juvenis -, que minha mãe conheceu no consultório em que ela trabalhava como recepcionista), concluí o Ensino Médio e o curso técnico em Processamento de Dados em 2004 e no ano seguinte começava a faculdade de História. Mas não foi fácil chegar à faculdade. Não foi o processo de entrar na faculdade o mais difícil, pois eu sentia confiança que estaria começando uma faculdade em 2005, mas sim o terror que meu pai vivia me colocando sobre a carreira de professor.

Sempre "entendi" meu pai. Talvez seja um dos meus maiores erros fazer o máximo para entendê-lo: entender os motivos que o faziam estar/ser tão distante de nós, do porquê dele não querer que um filho seguisse seus passos no magistério, essa coisas. Infelizmente não tive muita oportunidade de crescer com meu pai por perto, pois com ele separado da minha mãe e morando em Seropédica havia a distância a ser superada, mas nada que umas visitas ou ligações ocasionais não resolvessem, ou ao menos suavizassem a distância que tínhamos. O problema maior nisso tudo foi a distância sentimental que meu pai parecia determinado a criar, ao ficar ausente dos momentos mais importantes da minha vida.

Como disse no início desse memorial, meu pai é professor de Educação Física. Mas, apesar disso, ele sempre insistiu para que eu seguisse a carreira militar. Mais do que isso, pensava que só pelo fato de que pagava uma pensão aos seus filhos poderia pensar no nosso futuro melhor que nós mesmos. E quando soube que eu estava fazendo vestibular para História, usou de todos os argumentos e artifícios para me fazer desistir. E isso ocorreu desde esse momento até eu conseguir passar no concurso para o magistério, pelo Estado do Rio de Janeiro.

Mas, apesar de tudo isso, meu pai é um exemplo profissional para mim. Sempre foi, apesar de todos os problemas entre nós, a minha maior inspiração. Era interessante escutar suas histórias sobre as práticas com seus alunos, suas ideias, suas considerações sobre o magistério, e depois de formado e posteriormente exercendo o magistério, sempre me inspirei em práticas que ele tinha me relatado para tentar alcançar minha excelência enquanto professor. Acredito que esse foi o maior bem que meu pai me deu, mas é uma pena que, por tantos motivos, ele nem desconfie o quanto isso é precioso para mim.

Logo, mesmo contrariando veementemente a vontade do meu pai, entrei no curso de História em 2005, com 18 para 19 anos, assim que saí do Ensino Médio. Mesmo tendo certeza que eu entraria numa universidade em breve, não desconfiava que seria tão rápido, pois acreditava que depois de umas reclassificações nas universidades públicas eu seria chamado, mas o ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio - vinha ganhando cada vez mais importância, a ponto de garantir bolsas integrais em universidades privadas, com o PROUNI (Programa Universidade para Todos). Com minha nota no ENEM, consegui uma bolsa integral no curso de História da UVA (Universidade Veiga de Almeida).

Na primeira metade da primeira década do século XXI, um dos debates mais acirrados que tinha era em torno das cotas e outras ações afirmativas, que entre outros objetivos, tentava incentivar a entrada de alunos mais carentes - como eu - a universidades, tanto públicas quanto privadas. Muitos, dentro e fora da área da educação, questionavam se a qualidade do Ensino Superior no Brasil não seria prejudicada com alunos "tão defasados". Minha geração foi a primeira a provar que tínhamos plenas condições de chegar e terminar o Ensino Superior. E tenho um enorme orgulho em falar que entrei pelos programas do governo federal numa universidade. A partir daí, da entrada na universidade, o desafio era estudar e trabalhar.

Ao mesmo tempo que entrei na universidade, comecei o estágio no curso técnico de Processamento de Dados, mas confesso, nunca levei jeito para programador. Mas o fato de eu mexer com informática me garantiu durante os anos de faculdade pelo menos o dinheiro do transporte, dos livros (os mais baratos, claro) e o das cópias de materiais de estudo. É difícil você vir de um contexto socioeconômico que lhe é desfavorável e almejar algo a mais do que tudo aquilo que você vivenciou: estigmas em torno de raça, classe social, lugar onde mora, ver familiares e amigos que você acha inteligentíssimos sem ter terminado o Ensino Básico... Tudo isso dava uma tristeza profunda e também uma enorme força para fazer diferente, em alcançar objetivos que muitos consideravam inalcançáveis para pessoas que não tem um padrão do que seria o perfil de um universitário: branco, classe média, vindo de escolas particulares/pré-vestibulares badalados pela alta aprovação no vestibular. E a educação era a minha única arma para vencer tudo isso, por isso que acho até hoje que minha experiência no Ensino Superior foi diferente das de muitos amigos, que viviam me contando de festas, paqueras, viagens com os amigos de faculdade enquanto eu foquei ao máximo em estudar.

E na faculdade fui ter contato com outro professor que seria muito importante na minha caminhada rumo ao magistério: mestre George Cardoso da Silva. Professor George dava aulas de Sociologia, e essas aulas eram marcadas por tantos debates que não raro as aulas terminavam um pouco depois do horário - com poucos indo embora antes de terminar a aula-. Seu humor, a maneira dele tratar de temas complexos e suas frases marcantes (e muitas delas eu cito sem pudor - mas dando os devidos créditos - em minhas aulas) eram algo impressionante. Mas uma apresentação de um trabalho de Sociologia foi o que faltava para eu ter certeza de que eu queria ser e seria professor.

É engraçado que alguns sinais vem quando as coisas parecem mais difíceis: esse trabalho da aula do professor George, que considero o divisor de águas na minha escolha profissional, veio num momento em que eu estava sentindo grande pressão (pessoal e externa), a ponto de pensar em desistir da faculdade de História algumas vezes. Nesse trabalho proposto pelo professor George, tínhamos que desenvolver uma parte escrita e a apresentação deste trabalho para o resto da turma era facultativa. Mas, possuído de uma vaidade que pude experimentar poucas vezes na minha vida, apresentei o trabalho sozinho, pois eu tinha desenvolvido e articulado grande parte da pesquisa, então me senti seguro em encarar uma sala com pelo menos 50 pessoas prestando atenção na minha apresentação. Mesmo muito nervoso, tive a impressão de ter apresentado o trabalho muito bem, e tive certeza disso quando professor George encheu de elogios o trabalho escrito e a minha apresentação. Guardo até hoje, com imenso carinho, além das frases marcantes de professor George, esse trabalho. Ele foi a certeza de que eu estava no caminho certo.

No último semestre de faculdade, na primeira metade de 2008, comecei a dar aulas num pré-vestibular comunitário da EDUCAFRO (Educação e Cidadania de Afrodescedentes e Carentes), que funciona,até hoje, na Basílica de Santa Terezinha, no bairro da Tijuca (em frente a minha antiga escola, ISERJ). O projeto começou com uma parceria entre a UVA e a EDUCAFRO para que alunos das mais diversas graduações pudessem se engajar em algum projeto social. E essa oportunidade foi perfeita para mim, pois recém-formado, sem conseguir emprego como professor, essa seria a chance perfeita de eu me aperfeiçoar.

A experiência que o pré-vestibular me deu foi fundamental para minha prática como professor: exercitei minha didática, a curiosidade para melhorar minhas aulas ficou mais aguçada, comecei a ter o mínimo de jogo de cintura para dar aula em turmas em que os níveis de domínio da matéria e os ritmos de aprendizagem variavam bastante, enfim, tudo isso eu aprendi com a experiência de um pouco mais de dois anos dando aulas no pré-vestibular. Mesmo que o ritmo e o foco de uma turma de um pré-vestibular comunitário e de uma turma no ensino básico regular sejam diferentes, o pré-vestibular me deu uma boa bagagem para enfrentar a sala de aula.

O pré-vestibular também foi fundamental para eu ter o hábito de sempre avaliar minha postura como professor. Desde minhas primeiras aulas tento, ao máximo, desconstruir uma suposta superioridade que acreditamos ter em relação aos alunos, e essa postura tem consequências pavorosas, como o nosso completo distanciamento deles, que cria uma barreira intransponível entre professor e alunos, ou mesmo aquela quase certeza de que somos "salvadores da pátria" e que eles precisam ter completa obediência e disciplina quase militar em relação a nós. Essa experiência foi generosa em ensinamentos não só para a sala de aula, mas pessoais, e duas coisas que desenvolvi nessa minha primeira experiência como professor trago até hoje: conversar olhando nos olhos das pessoas, sempre, e, acima de tudo, carinho. As pessoas, sejam elas jovens ou adultos, admiram quem as tratam diferente, aquele diferente de ficar atento a pequenas coisas, como saber o nome da pessoa com quem conversa, de ter paciência para escutar, de ter firmeza nas críticas, mas passar confiança de que a pessoa pode dar o seu melhor, mostrar preocupação, ou seja, tratar as pessoas da melhor maneira possível e em condições de igualdade. Pode parecer pouco, mas para pessoas que sobrevivem com tão pouco (seja de ordem material ou sentimental, por exemplo), cada gesto de carinho pode ser um convite para voos maiores.

Falando em possibilidade de voos maiores, era chegada a hora de, enfim, eu ter o magistério como principal fonte de renda. Em novembro de 2009 fui chamado para tomar posse na minha primeira matrícula na rede pública de ensino, assumindo o cargo de Professor Docente I de 16 horas no Estado do Rio de Janeiro, dando aula no Colégio Estadual Brant Horta, localizado no bairro da Penha (fora a complementação de carga horária que fiz em outras escolas entre 2012 e 2015). Até o fim de 2010 dei aula no pré-vestibular comunitário, onde muito me orgulho de ter passado, onde fiz boas amizades, me desenvolvi como pessoa e vi alguns dos meus alunos passarem para universidades públicas e privadas. Mas no Ensino Básico público o desafio mostrava-se maior, a começar pelo número de alunos por sala e a quantidade de turmas em que eu daria aula de História. Até o Estado adotar algumas mudanças paulatinas, como o fim das turmas de Ensino Fundamental Regular em muitas de suas escolas (principalmente nas noturnas, em que dou aula desde minha entrada no Estado) e de mandar alunos maiores de 21 anos para o NEJA (Novo Ensino de Jovens e Adultos) a partir de 2012, eu dei aulas para turmas no Ensino Fundamental com perfil bastante heterogêneo no Estado, mas com essas mudanças se consolidando comecei a dar aula em turmas do Ensino Médio para jovens entre os 16 e 21 anos, passando também a dar aulas de Sociologia.

Mais a frente, em abril de 2012, fui convocado para dar aula no Município do Rio de Janeiro, na 6a CRE, que engloba alguns dos bairros mais carentes de toda a cidade. Até o final de 2012, dei aula na Escola Municipal General Osório, em Coelho Neto, mas desde 2013 dou aula na Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Fazenda Botafogo/ Costa Barros. No município, dou aulas para turmas regulares do Ensino Fundamental.

Nessa mudança de professor de pré-vestibular comunitário para professor da Educação Básica, os desafios são muito maiores do que a adaptação ao Ensino Básico Público. Falta de infraestrutura, turmas lotadas, alunos carentes em diversos sentidos, salários baixos, falta de incentivo em continuar os estudos... Nos últimos anos, principalmente no Estado, fomos vitimados por essa terrível moda que os governantes tem de colocar economistas em pastas como Educação e Saúde, e, com isso, eu, assim como muitos professores, tive que me desdobrar em duas, três ou mais escolas para completar a carga horária, por conta de otimizações de turmas ou mesmo fechamentos de escolas. E reformas educacionais, por mais administrativas e pontuais que sejam, sem escutar os professores que estão em sala de aula, é um crime. E é vivenciando esse e outros tipos de autoritarismo de pessoas e grupos que apenas dão vozes a números e estatísticas, e não a pessoas na educação pública, que me fizeram ser cada vez mais questionador de um sistema que se mostra cada vez mais perverso, seja para alunos, professores, diretores de escola. Entrei de cabeça em greves quase anuais de 2013 para cá, com a intenção clara de exigir condições mais dignas de trabalho, mas também por acreditar que existem lições a serem aprendidas/ensinadas (seja por nós ou por nossos alunos) além da escola.

Inspirado pelo profissional que meu pai é e pelos professores Antonio e George, me esforço ao máximo para que cada aula minha seja mais do que uma mera aula de História ou Sociologia. Sempre falo com meus alunos que eles podem, ao final do ano, não dominar por completo a matéria, ou ter gostado das minhas aulas ou mesmo da minha personalidade, mas existem coisas que me são muito caras e que quero que eles carreguem para o resto da vida: ética, respeito ao próximo, senso de responsabilidade. Há muito me desprendi dessa necessidade do meu aluno ter única e exclusivamente um conhecimento enciclopédico da minha disciplina. Quando estamos inseridos em ambientes de grande carência, a gente passar a ressignificar a nossa existência, o nosso dever, pois esses alunos não são alunos que tem apenas dificuldades na escola, com matéria "A" ou "B". Muitos são sobreviventes, pois lidam com a exclusão desde antes do nascimento. Se o professor vier e tentar empurrar um conhecimento que ele considera importante, mas que não tem a menor importância para o contexto do aluno, perdemos uma batalha. Temos que fazer o aluno entender o porquê aquilo é importante, em que aquilo vai ajudá-lo a crescer como pessoa, ao mesmo tempo em que temos que trabalhar a autoestima desse aluno, bombardeada diariamente com discursos que os fazem interiorizar um sentimento de inferioridade. É um trabalho feito sozinho, muitas vezes. Mas quando se tem o privilégio de trabalhar com um grupo de professores tão engajado como o grupo que faço parte na escola que dou aula no município, assim como tenho orgulho enorme em trabalhar com alguns amigos muito corajosos no Estado, sentimos que não estamos sozinhos.

Além disso, tento trabalhar o sentimento de empatia do meu aluno. Uma vantagem de eu ter vindo de um contexto parecido com o deles (escola pública, bairros pobre e periférico, menor poder aquisitivo, oportunidades mais escassas) me permitem sempre fazer um balanço da minha trajetória com eles. Já os aviso que muitos dos obstáculos que enfrentei eles, infelizmente, enfrentarão. Mas, por um outro lado, muitos deles carregam fardos que eu, aos 30 anos, não tenho força para carregar. Se eu fui forte para superar tantas provações, e eles, fortes para superar também tantas coisas, por quê desistir? E isso me ajuda a construir laços com meus alunos, e quando se tem essa relação de confiança, raramente eles decepcionam.

Acredito que do professor que eu era no início da minha carreira para o profissional que sou hoje, excluindo o desenvolvimento da prática diária do ofício, que é diária, há muitas permanências, que na verdade são mais traços da minha personalidade e do que aprendi nos ambientes que vivi do que necessariamente de lições que o magistério me ensinou. O magistério foi e é importante porque amplifica essas características minhas, por isso que, apesar de não ser um sentimento pleno, me sinto feliz e realizado. Mesmo com desafios enormes, tenho sorte em iniciar, quase ao mesmo tempo, duas caminhadas árduas, mas repletas de prazer: o casamento com minha esposa, Soraya, e o mestrado, que, se não fosse pela minha esposa, jamais teria tentado. E ambos tem me dado força para rever algumas de minhas práticas e mais coragem em seguir adiante em ofício tão nobre, mas, por ora, tão desvalorizado.

Mas continuar em frente não é fácil. Somos testados nos nossos limites e, não à toa, muitos colegas professores adoecem. É um quadro desolador que quase sempre dá um nó na garganta e uma interrogação paira sobre minha cabeça: como pode um país falar que uma de suas prioridades é a educação, se não se importa com a formação continuada, as condições de trabalho, o salário, a carga horária de seus professores? Eu deixo a resposta em aberto, como um convite a reflexão. Em tempos tão sombrios, em que pessoas que nunca pisaram numa escola pública para trabalhar (ou mesmo estudar) um só dia se acham no direito de serem "senhores do destino" de nosso jovens mais desassistidos, tentando empurrar goela abaixo de todos os envolvidos e engajados num projeto de escola pública E de qualidade (pois um não exclui o outro) um projeto de determinismo social disfarçado de reforma educacional, fora outras violências contra a escola pública e quem dela precisa; é preciso força, sabedoria e frieza para encarar tantos ataques.

Para encerrar, peço licença em tornar público um pensamento que sempre tive, mas sempre mantive guardado a sete chaves, com o perdão da ignorância científica e da licença poética: se um dia me perguntarem o que eu quero ser, direi que eu quero ser um cometa ou um meteoro. Pois um cometa, mesmo passando longe, é algo tão raro de se ver que marca a trajetória terrena de qualquer um; um meteoro, se cai, deixa um buraco enorme, mostrando que esteve ali. Então sempre tento deixar a minha marca na vida das pessoas. Por mais breve que seja minha convivência com aquela pessoa, ela sempre vai se lembrar de que eu passei na vida dela, seja como cometa ou meteoro. Então, que sejamos cometas ou meteoros e que marquemos trajetórias de luta, que causemos impactos positivos para todos que nos cercam. Em um mundo tão marcado por impactos ruins, que sejamos a força transformadora na vida de nossos alunos.

 

 

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