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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Fernanda Sardinha Murro
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 03/01/2018
Sumário

Fernanda Sardinha Murro participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

 

Memorial

 

 

Eu tinha nove anos quando decidi que iria fazer faculdade. Eu ainda não sabia que carreira queria seguir, mas sonhava em ser a primeira da família a ter um diploma. Meus pais sempre me incentivaram apesar de no fundo acharem que isso não seria possível. Naquela época acreditavam que faculdade era coisa de gente rica e um salário de motorista somado ao de uma babá não bancaria um curso superior.

Eu fui uma criança introvertida e passava muito tempo em frente à TV ou rodeada por livros. Assistindo seriados e filmes antigos me apaixonei por mitologia. Não perdia nenhum episódio de Hércules e assisti "A Odisseia", "Jasão e os Argonautas" e outros clássicos dezenas de vezes. Passei a frequentar a biblioteca municipal e levava para casa todos os livros que tratavam de mitologia. Li quadrinhos, versões da mitologia grega feitas por Monteiro Lobato e outros autores brasileiros e logo me interessei também pela mitologia egípcia e a nórdica. Passava horas lendo e até inventava histórias envolvendo heróis gregos, nórdicos e deuses egípcios.

Na quinta série tive uma professora que sempre levava os alunos a refletir sobre os mais diversos temas e eu adorava todas as aulas. Através do livro didático passei a conhecer mais daquelas civilizações que eu já admirava. Cada imagem, arte e informação me fazia querer saber ainda mais sobre aqueles povos.

Meu professor de história da sexta série adorava contar detalhes da vida privada da Europa moderna. Ele tentava desmitificar um pouco da visão romantizada que a maioria dos alunos tinham do passado. A partir daí parei de desejar ter vivido em outro época. Era horrível pensar em viver sem saneamento básico e principalmente em ser tratada como alguém inferior por ser mulher. Foi nesse ano que assisti Indiana Jones pela primeira vez e achei que finalmente havia achado a profissão que queria seguir. Não acreditava que a arqueologia seria cheia de aventuras como as representadas no filme e nem que viveria escapando de armadilhas criadas antes do nascimento de Cristo, mas de alguma forma eu idealizava a profissão. Eu queria estudar o passado e também descobrir detalhes sobre civilizações antigas e grandiosas. Sonhava em ver de perto as pirâmides do Egito e as ruínas gregas e romanas. Por conta dessa paixão ganhei um jogo chamado "Age of Mythology" e passava mais tempo lendo as descrições de cada herói, deus e costumes do que jogando as campanhas para conquistar territórios. Por causa do jogo também desenvolvi certo medo do deus Anúbis que sempre mandava seus lacaios para destruir meus exércitos me fazendo perder a partida.

Meu pai foi por muitos anos motorista da educação e todas as professoras de história que ele conhecia passaram a me mandar livros ao descobrir meu interesse sobre assunto. Ganhei muitos livros sobre mitologia e também livros didáticos que devorei em pouco tempo. Ainda lembro de muitas imagens e textos desses livros.

Na sétima série li cada passagem sobre a escravidão horrorizada com os relatos e imagens. O que me deixava ainda mais horrorizada era ver colegas atacando outras crianças com ofensas racistas travestidas como piadas. As mesmas ofensas que havia visto em charges e caricaturas ainda eram utilizadas no início do século XXI, e ainda são infelizmente. A professora também trabalhou capitalismo e socialismo nesse ano, mas em forma de debate. Dividiu a sala e cada grupo defenderia um lado. Isso levou a debates acalorados e no fim ela nos direcionou em uma reflexão não só sobre o tema, mas também sobre a agressividade demonstrada por alguns alunos para defender suas ideias.

Mas foram os estudos durante a oitava série que me causaram maior impacto. O estudo da história contemporânea trouxe novas perspectivas e novos fatos para me deixar perplexa. Eu fiquei fascinada pelas guerras e conflitos, não pelas armas ou a capacidade de matar, mas pela ideia de alguém matar e morrer em nome da nação. Genocídios e grandes líderes de um passado tão próximo me surpreenderam.

Através de conversas com meus pais, descobri minha ligação com esse passado que tanto me fascinava. Meus bisavós paternos vieram da Itália para o Brasil no mesmo barco ainda crianças na época da Primeira Guerra. Se conheceram aqui e acabaram se casando. E meu avó materno fugiu a pé do Rio de Janeiro para o Espírito Santo com medo de ser enviado para Segunda Guerra. Costumava brincar que meu orgulho era ter sangue de desertor. Meu pai também me contou que logo após tirar o título de eleitor, aconteceu o golpe militar. Ele contou do seu tempo no exército no Rio de Janeiro, da vida dura dentro do quartel e também de como após abandonar o exército virou cobrador de ônibus e viu muitas pessoas desaparecerem após serem abordadas por policiais. Cada conversa e cada livro que eu lia gerava uma curiosidade ainda maior sobre os horrores desse passado recente.

No ensino médio conheci teorias revisionistas sobre o holocausto e isso gerou indignação e horror. Me aprofundei ainda mais nas leituras sobre grandes guerras. Trabalhei por um tempo em uma locadora e tive acesso a vários filmes cujo cenário histórico me deixaram maravilhada. Nesse período também me apaixonei pelas estrelas, mas só de pensar em toda a matemática e física que teria que estudar, desisti do ramo. Ainda gosto de estudar astronomia, mas não se compara ao meu amor pela história.

Em uma viagem em família visitei o Museu Nacional e no momento que entrei na sala de múmias meus olhos se encheram de lágrimas. Ver de perto objetos, joias, sarcófagos e múmias me emocionou, era um sonho de infância se realizando. A essa altura a ideia de ser arqueóloga já era mais distante. O curso era ofertado em pouquíssimas universidades e todas muito distantes. Surgiu a vontade de fazer história, mas eu me preocupava muito com a possibilidade de ser professora. Tinha o hábito de ensinar meus colegas e meu irmão mais novo e até gostava disso, mas a timidez me fazia ter medo de enfrentar uma sala de aula. No terceiro ano fiquei em dúvida entre história, psicologia e jornalismo, mas por fim decidi fazer a história. Ainda tinha medo de ter que dar aula, mas decidi que queria aprender mais sobre a disciplina que já gostava há tanto tempo. A situação financeira da minha família ainda era precária, mas no momento em que passei no vestibular da Universidade Federal de Viçosa, meus pais decidiram que fariam o possível para me dar a oportunidade de estudar. Felizmente meu pai foi transferido de setor e seu salário dobrou tornando possível me ajudar nos anos de graduação.

O primeiro período foi um choque, as leituras pareciam complicadas demais e a ideia que eu tinha de verdade caiu por terra. Muitos professores falavam das diversas inverdades presentes nos livros didáticos e aquilo me decepcionou. Mas logo me acostumei com a vida acadêmica. Me apaixonei por muitos autores e senti minha visão se expandindo em relação a muitos assuntos. Me interessei por ciência política e história cultural e agora tinha uma biblioteca ainda maior para consultar. Fiz várias disciplinas envolvendo arte e patrimônio. E as visitas que fiz a Mariana, Ouro Preto e Tiradentes foram maravilhosas.

Inicialmente decidi que queria fazer mestrado e doutorado e então arrumar um trabalho em que eu ficasse sozinha em um arquivo cercada por livros. Comecei a trabalhar com semanários humorísticos do Império e depois da República e então foquei naqueles paralelos aos eventos das grandes guerras. Passei muito tempo animada com a pesquisa mas aos poucos fui desanimando, pois não via mais muito sentido naquilo.

Durante a graduação eu tinha certo preconceito com as disciplinas da educação e só vi valor em muitas leituras quando encarei a sala de aula. As disciplinas de prática de ensino eu adorava, mas ainda ficava muito constrangida quando pensava em enfrentar uma turma de adolescentes. O estágio supervisionado eu fiz em uma escola pequena e tranquila e apesar de estar nervosa, me saí bem quando tive que dar aula.

Após a formatura fiquei dois meses desempregada até ser chamada para dar aula na escola de ensino médio onde eu tinha estudado. Ficaria até o fim do ano pois a professora estava de licença maternidade. Na véspera do meu primeiro dia eu não dormi. Fiquei apreensiva e com medo de tudo que podia dar errado. Por sorte, era uma aula logo após um feriado e em uma turma só tinha duas alunas e pude conversar com elas e ficar mais tranquila. Nos primeiros dias ainda ficava nervosa e preocupada mas logo as coisas melhoraram. Na época da graduação um dos meus professores contava que quando dava aula em escola pública assistia malhação para se aproximar dos estudantes e eu resolvi seguir o exemplo. Não assistia novela, mas trabalhava com referências de filmes, séries, quadrinhos e cultura pop conseguindo assim me aproximar dos alunos e ajudá-los a entender o conteúdo. Infelizmente nessa época eu me sentia um pouco superior aos alunos, achando que seus problemas eram mínimos e apenas coisa de adolescente. Quase no fim do ano dois adolescentes cometeram suicídio na cidade e isso me atingiu. Percebi que meu papel ia além do estudo da história. Comecei a dar mais abertura para os alunos, conversando sobre todo tipo de assunto, inclusive os incentivando para buscar o ensino superior. A crise que tive em relação às "mentiras" do livro didático apareceu novamente, mas entendia que a história é formada por interpretações e cada linha escolhe a "verdade" que quer contar e busquei trabalhar isso com os alunos.

Meu segundo ano de trabalho foi o mais difícil mas acredito que tenha sido o que mais cresci. Fui para uma escola em outra cidade e com fama de ser a pior da região trabalhar com ensino fundamental. Encontrei alunos carentes e indisciplinados e o discurso que ouvia da equipe gestora era de que não deveria nem sorrir para os alunos. Os primeiros dias foram difíceis principalmente porque eu estava assumindo uma postura autoritária. Percebendo que as coisas não estava funcionando, decidi mudar a minha postura. Passei a tratar os alunos com mais carinho e busquei transformar a sala em um ambiente mais democrático com diálogo e compreensão. Aos poucos a postura dos alunos foi mudando também, mas mesmo assim ainda não se interessavam pela história. Mudei então o meu jeito engessado de dar aulas. Até então eu tratava a história como algo isolado e estático no passado acreditando que essa seria uma forma de simplificar o conteúdo para que eles entendessem. Busquei então tornar o aprendizado mais significativo fazendo debates e levando os alunos a reflexão. Mudei o formato das aulas e tentei fazer mais ligações entre presente e passando trabalhando com eles notícias atuais e a ideia de processos históricos. Trabalhei com filmes, dinâmicas e valorizei mais o que eles produziam finalmente fazendo com que eles se interessassem em aprender.

A maioria dos alunos vinham de famílias muito pobres e com vários tipos de problemas familiares, por isso tentei também trabalhar a auto estima deles e me mostrei aberta a qualquer tipo de diálogo. Isso até rendeu cenas engraçadas já que eles se sentiam tão à vontade que me perguntavam qualquer tipo de coisa. Pediam conselhos de relacionamento, perguntavam sobre saúde, educação sexual, conflitos familiares, e muitas outras coisas. Muitas aulas foram para caminhos que não esperava mas logo percebi o quanto isso era importante para eles. As conversas logo levaram a debates que acredito que foram muito importantes chegando a temas como questão de gênero, desigualdade, racismo e etc. Eu finalmente vi a educação como algo mais abrangente e o convívio com esses alunos me fez valorizar mais a minha profissão. Vi alunos mudando de postura, desenvolvendo uma consciência crítica e crescendo como cidadãos.

Nessa escola enfrentei vários problemas que as aulas da graduação não tinham me preparado para encarar. Um grande problema foi a diretora da escola. Autoritária, ela maltratava alunos e principalmente professores. Invadia salas de aula e humilhava professores na frente dos alunos. Chegou a entrar na minha sala duas vezes e em ambas eu a enfrentei. Um dia encontrei duas professoras chorando por conta de humilhações e aquilo me revoltou. Levei uma das professoras a Superintendência Regional de Educação e entramos com um processo administrativo. Infelizmente o processo não foi para frente por conta da diretora ser cunhada do governador da época. Ela então passou a me perseguir mas não me importei. Busquei fazer meu trabalho da melhor forma possível e procurei dar toda a assistência que podia aos meus alunos. Foi um ano difícil mas de muito aprendizado com meus alunos e também com os colegas, principalmente os da área de ciências humanas.

A terceira escola que trabalhei era pequena e não tinha problemas de disciplina. Apliquei o que tinha aprendido na escola anterior e tentei incentivar os sonhos dos alunos. Enfrentei certa dificuldade com a única turma de ensino médio que lecionava. Alunos com mentalidade retrógrada, racista e homofóbica. A turma era dividida e os preconceitos sempre apareciam. Entendi a necessidade de trabalhar a fundo temas polêmicos para então tentar desconstruir todas as noções preconcebidas e agressivas que eles carregavam. No meio do ano já havia mudança nas relações entre eles devido a um trabalho feito em conjunto com professores de diversas disciplinas.

No ano seguinte voltei a escola com fama de pior da região e no primeiro dia a diretora já me recebeu de forma rude. Fiquei com as turmas consideradas as piores da escola no ensino fundamental e novamente assumi o papel de mediadora através da afetividade. Logo aqueles alunos considerados difíceis sentiram que finalmente estavam sendo bem tratados e foram melhorando. Desenvolvi projetos interdisciplinares e isso ajudou no processo ensino aprendizagem. Busquei dar voz a eles e vi crianças consideradas "problema" crescendo e debatendo temas importantes, querendo entender mais do mundo que os cerca para serem agentes de mudança.

Nesse ano também tive a minha primeira experiência com turmas da EJA e queria trabalhar com eles sempre. Na maioria das aulas os temas se misturavam à vivência e experiência dos alunos e isso tornou o aprendizado muito rico, não só para eles mas para mim também.

Tenho poucos anos de formada, mas a cada ano tenho aprendido mais na convivência com os alunos e tenho descoberto coisas que ainda preciso mudar na minha prática. Vejo o Profhistória como mais uma etapa nesse longo processo de aprendizagem do meu ofício.

 

 

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