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Acervo Trajetórias Docentes

Entrevistado: Fabrício Castilho Nunes de Andrade
Entrevistador: Memorial - PROFHISTÓRIA
Tipo: história de vida
Duração:
Local:
Data: 03/01/2018
Sumário

Fabricio Castilho Nunes de Andrade participou do PROFHISTÓRIA (Entrega do memorial – 03/2018)

Memorial De Formação

 

 

Este memorial tem por objetivo narrar como se deu a minha constituição, ou pelo menos a parte consciente disso, enquanto professor. Tarefa essa extremamente desafiadora, em minha opinião. Onde situar, precisamente, o nascimento de um desejo, uma paixão, um objetivo de vida? Como nasce um profissional de qualquer área? Como nasce um professor?

Alguns podem, de pronto, responder que teria a ver com formação, estudo. Eu, provocativamente, devolvo, de forma invertida, a pergunta: Será que o estudante já apaixonado, vislumbrando e deslumbrado com suas possibilidades futuras já não busca uma determinada e específica formação? Já não há aí implícita uma inclinação?

Enfim, longe de qualquer pretensão quanto a responder esses questionamentos, lhes ofereço, inocentemente, o que posso, a minha trajetória enquanto tal. Cheia de avanços, recuos, sonhos, realidades, lacunas, mas acima de tudo, sinceridade (na medida em que a memória ajuda, rs).

Começando, de fato, essa narrativa, apresento-me. Meu nome é Fabricio Castilho Nunes de Andrade, nascido em Campo Grande, zona oeste periférica da cidade do Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1979, o primogênito de uma família nuclear (a princípio) de dois irmãos (também a princípio) que vai se basear, desde suas origens mais próximas, no bairro de Padre Miguel, onde vivi por quase 30 anos, morando em diversos lugares da mesma região, até o meu casamento, onde a partir de 2010, me encontro residindo em Campo Grande, numa espécie de volta pra casa.

Desde muito pequeno, me recordo de ter gosto especial pela leitura. Lembro-me de, muito miúdo, provavelmente ainda maravilhado pela recente alfabetização, ler tudo e qualquer coisa com a qual me deparava pra rua, pra desespero da minha mãe, uma vez que isso, perigosamente me fazia e, a ela por tabela, parar em meio aos carros, atravessando a rua pra ler qualquer coisa. Esse encanto pela capacidade de ler e interpretar, de alguma forma, o mundo a minha volta, logo acabou me transformando num pequeno devorador de livros, revistas, gibis e tudo o mais que chegasse às minhas diminutas mãos ou se encontrasse ao alcance das vistas, mesmo que muitas das vezes a mensagem não me fizesse lá muito sentido.

Com isso, tornei-me, desde muito cedo, um curioso. Sempre interessado em ler e conversar sobre qualquer assunto, com qualquer pessoa, fosse adulto ou criança.

Embora morador de uma região pobre, minha família era socioeconomicamente um pouco acima das demais da vizinhança, o que permitia que eu e minha irmã, quase dois anos mais nova do que eu, quando atingindo a idade escolar, pudéssemos estudar em algumas instituições particulares, sem dúvidas, das melhores dos bairros próximos. Ingressei ainda na pré-escola, no já extinto Chalé Dunga, lá cursando o Maternal e Jardim de Infância.

Mais tarde, dando sequência, cheguei a instituição que, sem dúvidas, exerceu grande destaque na minha formação tanto humana, como profissional/acadêmica, o “Mundo Alegre da Criança”, depois transformado em “Centro Educacional Novo Mundo”, onde debutei em 1984, aos 4 anos, pra cursar a classe de pré-alfabetização e de onde parti para ingressar na universidade aos 18 anos de idade.

Cursando os anos iniciais do ensino fundamental, nessa escola, fui alfabetizado ainda segundo aquele método tradicional, mas que me foi suficientemente eficaz ao permitir acessar o maravilhoso mundo das letras, da leitura e das suas múltiplas possibilidades. Nesse momento tive contato com professoras dedicadas e maternais, que além de me encorajarem às letras ainda realizaram um ótimo papel na formação de valores morais e afetivos.

Junto com a chegada a antiga 4ª série (agora 5º ano do fundamental), vieram também as primeiras e significativas mudanças. Tínhamos agora mais que uma professora, outra referência, no que se tornaria a tônica dali pra frente, a fragmentação e a especialização, não só de conteúdos, mas também de opiniões, visões de mundo e tudo o mais.

Ingressando no segundo segmento do fundamental (atual 6º ano), a primeira crise. Ano letivo abaixo do usual, sob o ponto de vista do aprendizado e, sobretudo, das notas, problemas pessoais em casa (papai e mamãe exaustos um do outro e pondo um casamento abaixo) e pra concluir, a reprovação ao final do ano letivo. Conceito insuficiente em matemática e desenho geométrico, apesar de todo o esforço, meu, dos meus pais e das diversas possibilidades de reavaliação que a escola oferecia.

Parece-me que nesse momento, não sei se a quem lê, mas pessoalmente está mais que nítida, a inclinação para as disciplinas ditas humanas. Essa predisposição que ditou, desde sempre meu desempenho escolar. Muito marcado pela facilidade em disciplinas como Língua Portuguesa, História, Geografia, literatura e inversamente proporcional nas dificuldades nas exatas, como matemática, Física, Química.

Curioso é perceber, fazendo esse esforço de memória, que não tenho as melhores recordações das aulas de História, ou melhor, dos meus professores de História, que se valiam de métodos arcaicos, pra não dizer mecanizados de fazer a aula e na interação conosco, alunos. Talvez isso, de certa forma, tenha marcado a minha opção, a minha escolha mesmo pela História, talvez a curiosidade/vontade de transcender aquelas aulas que apesar da boa vontade dos docentes, pouco acrescentavam além das avaliações que eram exigidas sazonalmente.

Durante bom tempo, infelizmente, esse referencial de boa prática docente me fez falta.

Depois de cursar todo o ensino médio (em minha época de ensino básico, conhecido como 2º grau) era a hora de escolher que caminho profissional tomar. Embora já ciente da minha veia “humanística” e talvez marcado pela falta de referenciais em sala de aula, a escolha inicial não foi pela História, mas sim, pelo Direito. Parecia-me mais aprazível, sob muitos aspectos, ser “doutor” do que professor.

Contudo, a proximidade dos exames vestibulares, me fazia repensar a opção inicial. E a antes inabalável certeza pelo direito passou a se transformar em dúvida, até que no momento final da escolha acabei me inscrevendo em apenas dois exames, por dificuldades financeiras, para a UFRJ e pra UFRRJ. Na UFRJ, para o Bacharelado em História, enquanto que na UFRRJ, bem, na UFRRJ, ainda não existia a cadeira de História, então resolvi me arriscar em... Zootecnia, rs. Sei que não tem muito a ver, mas que história não tem o seu imponderável?

Uma pausa nessa história em si se faz necessário pra um esclarecimento rápido, mas imprescindível. Devo admitir, uma das coisas que me empurraram pra História foi a relação candidato/vaga, além do tempo de duração do curso, menor em relação ao previsto para Direito. Ah, se eu desconfiasse que ficaria tanto tempo como fiquei na graduação no IFCS – 12 períodos!

Feitas as provas, sucesso total! Passei exatamente no último lugar das 90 vagas oferecidas pela UFRJ no vestibular de 1998. Ufa!

Marcado pra iniciar as aulas no segundo semestre noturno de 1998, mais precisamente em agosto desse mesmo ano, o primeiro acorde da “trilha sonora” que embalaria meus anos de graduação na universidade pública se fez ouvir em alto e bom som. Greve! Passeata! Protesto! Eram os anos FHC, com sua sanha neoliberal a atacar o ensino superior. Minha experiência universitária foi adiada. O semestre letivo só começaria em Outubro, em meio a todo esse turbilhão.

Apesar das dificuldades no macrocosmo da educação superior brasileira do período e do estranhamento inicial, me sentia bem no novo ambiente. Sentia que aquele era o meu lugar, me sentia realizado por ter chegado até ali e ter a chance de tomar parte em tudo aquilo, desde as novas amizades com os colegas, passando também pelas discussões dos textos com os professores. Aquele cenário ali, pelo menos inicialmente, me satisfazia plenamente.

Durante a graduação tive contato e aprendi muito com mestres maravilhosos, cada qual com o seu estilo, mas que, sem dúvidas, deixaram em mim, cada qual, a sua marca e contribuição para o professor que sou hoje. Figuras do quilate de Leila Roedel, Flávio Gomes, João Fragoso, Juliana Beatriz, Leonardo Chevitarese, dentre outros tão valorosos quanto. A estes, devo minha base epistemológica, meu saber sábio, meus saberes de referência.

Era o final dos anos 90, tempos estranhos, malignamente parecidos com os que vivemos agora, quase 20 anos depois. Tempo em que a universidade pública lutava pra sobreviver, mesmo que sucateada, sufocada, golpeada. Então, nada de bolsas de iniciação científica, nada de laboratórios, financiamentos para obras eram raros, sem qualquer incentivo ficou difícil, pra mim, e acho que pra todos os meninos e meninas da periferia pobre e distante que ingressavam naquele momento ter uma participação mais dedicada na vida acadêmica. No meu caso, mais especificamente, as dificuldades financeiras me empurravam para o trabalho em paralelo com a universidade à noite, ou de dia, em horário alternativo.

Nesse cenário, passei toda a minha graduação sem ter me engajado em nenhum laboratório de pesquisa ou participado de nenhuma iniciação científica. Nem mesmo a congressos dentro ou fora do Rio de Janeiro. Lacuna essa do qual me ressinto até hoje.

A medida que a formação ia se afunilando, as preferências iam, igualmente, se destacando, e comecei a apostar cada vez mais nas eletivas ligadas a História Medieval, oferecidas pelos professores do PEM1. Parecia que minha formação e, consequentemente, a monografia de final de curso iam caminhar por ali.

Contudo, o cenário tenebroso em que a educação superior apresentava me colocou a urgente necessidade de abrir o leque de oportunidades, uma vez que, cada vez mais o campo da pesquisa histórica não me parecia uma possibilidade real.

Então, levado pelas amigas de turma lá estava eu, albergado no prédio do DCE do Campus da Praia Vermelha, em plena madrugada pra tentar me inscrever em algumas das poucas vagas abertas para as disciplinas da educação que permitiriam, ao fim do processo sair da universidade além de bacharel também licenciado em História, o que me possibilitaria outra possibilidade laboral: a sala de aula.

As aulas da faculdade de educação, com suas exíguas 6 ou 7 disciplinas se mostravam pouco eficazes, uma vez que não se voltavam especificamente para a prática e faziam uma espécie de formação sui generis, apesar da presença de licenciandos das mais variadas procedências. O grande diferencial da faculdade de educação, de fato, se revelaria no estágio da prática docente.

Orientado pela grande professora Ana Maria Monteiro fui encaminhado para minha experiência docente oficial no Colégio de Aplicação da UFRJ, na Lagoa, onde deveria acompanhar as aulas do 6º ano do fundamental, do 8º ano e do 1º ano do Ensino Médio. Essa experiência do Cap, que parecia ser só mais uma parte de uma já longa formação se mostrou decisiva e fundamental, por me permitir conhecer professores que se tornaram referências – os tais dos quais eu sentia falta na minha passagem enquanto aluno –, pra minha carreira docente e que, contribuíram consequentemente pra afastar de uma vez por todas a dúvida de qual seria o meu lugar definitivo nessa história toda.

Entre os muito bons profissionais que tive a chance de seguir, observar a aprender no Cap, a menção mais que especial vai para a professora, hoje já doutora, Cinthia Araújo, dona de uma simpatia e receptividade, além de experiência e profissionalismo que fez da minha experiência lá, como licenciando, e de minhas colegas, inevitavelmente algo envolvente e fecundo.

Depois de muito observar e aprender chegara o tão temido, mas ao mesmo tempo aguardado, dia da regência. Escolhi a turma do 1º ano pelo fato de achar mais fácil a comunicação, não só pela proximidade etária, mas também pelo fato de já estar lecionando em preparatórios e pré-vestibulares. O tema escolhido foi sobre a África pré-colonial, onde estimulei os alunos através de slides, textos e exposições a conhecerem e interagirem com civilizações como os reinos de Ghana, os Império Mali e Songhai, finalizando com uma atividade de avaliação onde propunha aos discentes que enxergassem o negro além do papel de escravo. O resultado me pareceu bastante satisfatório, apesar do meu nervosismo, latente. Os alunos, já acostumados à presença constante de licenciandos, foram bastante receptivos e compreensivos.

A essa altura dos acontecimentos, eu já havia me lançado em outra frente de batalha. Levado por um grande amigo e referência didática, embora heterodoxa, pra mim, até aquele momento, conheci e me embrenhei num projeto, voltado para a preparação de negros e carentes, da ONG EDUCAFRO, ligado à PUC- RJ, em Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ali, numa troca quase que diária com os alunos e também com outros colegas professores, além do pessoal de apoio, percebi a real importância da profissão da qual começava, de fato, a tomar posse. Ali percebi a responsabilidade social que a nossa profissão guarda, o quão importante somos e de que forma podemos fazer a diferença na vida das pessoas. Lá passei 12 maravilhosos anos, de muito aprendizado, carinho, respeito mútuo e ensino.

O fato de estar com uma turma de preparatório, em um trabalho como voluntário me permitia uma liberdade de ações que dificilmente acharia em outro lugar, o que me permitia descobrir, experimentar, ousar. Produzindo desde materiais autorais a serem utilizados na aula, até mesmo inovando no formato das mesmas. Dessa possibilidade e experimentação nasceram dois filhotes dos quais tenho muito orgulho: – um programa de aprofundamento, realizado com o grande amigo, colega e companheiro de empreitada de sempre Flamarion Ismirim, de Geografia e eu a cargo da História. Juntos, formávamos o 2upla 2inâmica, onde fugíamos de um formato tradicional de aula e realizávamos quase que um “talk show” direcionado aos interesses dos alunos – e as “aulas de campo”, iniciativa pioneira, realizadas desde 2003 até hoje, onde compartilhamos com nossos alunos conhecimentos acerca de lugares de memória e história da cidade – in loco.

Depois de quase 10 anos de ingresso na universidade, conseguia colar grau (finalmente!). Muito motivado pela possibilidade, de fato concretizada, da convocação para o concurso público da rede estadual, em que havia sido aprovado em 2004. Contando com a ajuda valiosa de mestres como o Professor Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio, Carlos Ziller e João Fragoso, que corrigiram minha monografia em um final de semana, colei grau de forma especial a tempo de tomar posse no tão aguardado concurso. Meu trabalho de conclusão de curso, apesar das muitas disciplinas em Medieval acabou abordando o contexto comercial da capitania do Mato Grosso no último quarto do século XVIII, sob orientação e parceria do Professor Jucá de Sampaio2.

Eu entrava definitivamente, e de cabeça, no desafiador, sob muitos aspectos, mundo da educação formal e pública, numa área socialmente carente, distante e absolutamente desconhecida. Lotado em uma escola da periferia de Nova Iguaçu (onde me encontro até hoje), dei início a essa parte da minha jornada, marcada por pequenas vitórias, alguma alegria, mas também por parte nem tão bacanas assim.

A minha inexperiência, de certa forma, era compensada com minha imensa vontade de acertar. A unidade escolar, no entanto, apesar do corpo docente, muito participativo e disposto, sempre conviveu com dificuldades de ordem material e a violência, sobretudo no seu entorno. Realidade essa, infelizmente, ainda presente.

Tendo como referência os “anos dourados” do Cap, e o clima acadêmico tanto no IFCS, como na Praia Vermelha, rapidamente a realidade se escancarou. Público difícil, totalmente carente de referências. A direção sempre muito preocupada em seguir as normas da secretaria de educação tampouco ajudava, bem como também minha atitude, um pouco arrogante, achando ser possível academizar aqueles jovens e meninos que cruzavam o meu caminho. Criado dentro de um modelo tradicional de estudo e disciplina, aquela realidade me parecia um pesadelo.

Com o tempo passei a perceber, contudo, que mais do que aulas de história (pelo menos daquele tipo previsto pela prescrição curricular clássica) aqueles jovens necessitavam de algum apoio, atenção e cuidado. Com o carinho e respeito que passei a receber de volta percebi possibilidades de convivência mais harmoniosa, embora não livre de conflitos, uma vez que estar em sala de aula com jovens em plena periferia de um lugar periférico é “ligar o liquidificador sem tampa e tentar aparar tudo com uma das mãos”.

Durante alguns anos, a rede estadual nos permitia, enquanto docentes, praticamente toda a liberdade pedagógica, o que permitia fugir volta e meia do formato expositivo, mas à medida que a orientação da SEEDUC foi se pautando pela lógica comercial, econômica e do lucro, como hoje em dia, essa autonomia relativa foi dando lugar à economia de cópias, à falta de materiais, em geral, à precarização da estrutura, o que passou a impactar diretamente no nosso trabalho, dificultando-o.

Fazendo o exercício de olhar pra trás, em perspectiva, como o que nos inspira o presente trabalho, vejo que apesar do trabalho ser árduo, maçante, por vezes, ele é coroado de nobreza, amor e ternura, e que não existe nenhum professor, por mais tecnicista que seja, que não alimente em seu íntimo mais profundo a vontade de contribuir, ajudar de algum jeito, fazer melhor. Porque ao início e ao cabo essa é a missão que nos cabe, é pra isso que estamos aqui. Dando, recebendo, trocando. O que a princípio parece tão assimétrico em favor deles, mas que no final você percebe que recebeu muito mais que deu. Assim eu me fiz, assim eu faço, assim eu fui feito professor.

E com muita satisfação e alegria, ao invés de caminhar para o fim, essa história, a da minha formação, acaba de ganhar mais um capítulo, que agora começa a ser escrito, justamente por essas linhas. Que a conclusão seja tão feliz quanto o começo. Prof História! Aí fui eu!

 

1 Programa de Estudos Medievais da UFRJ, dirigido à época pela Professora Doutora Leila Rodrigues Roedel.

2ANDRADE, Fabricio Castilho Nunes de. A Capitania do Mato Grosso no século XVIII. No prelo.

 

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