O inimigo da fotografia é a convenção. A sua salvação vem do experimentador que se atreve a chamar “fotografia” qualquer resultado com meios fotográficos, com uma câmera ou sem ela.
Laszló Moholy-Nagy, 1947.
As publicações do LABHOI ampliam seus horizontes ao incorporar em seus títulos novos trabalhos que estabelecem diálogo estreito com as indagações do Grupo. Em sintonia com os desafios da cultura visual contemporânea propomos uma nova modalidade de divulgação de trabalhos de artistas que se relacionem com as temáticas da história da memória. Essa nova série se inaugura com o trabalho de Claudia Maria Mauad de Sousa Andrade, composta pela publicação de texto original, um estudo sobre a relação entre fotografia e artes visuais em perspectiva histórica e pelas séries de artes visuais que se desdobraram desse estudo. As séries são exibidas acompanhadas das reflexões da artista sobre a sua prática de relacionar o ato de ver ao de conhecer nos mundos das artes visuais, buscando-se com isso criar um ambiente expositivo e possibilitar o leitor, num mesmo e complementar movimento, conhecer por meio de imagens.
Peles Fotografias: uma reflexão sobre a fotografia sem câmera
Com a palavra, a artista...
Atualmente, os processos de produção computadorizada estão tomando o lugar ou complementando as tradicionais imagens fotográficas, colocando a fotografia diante de duas crises: uma tecnológica e outra epistemológica. De acordo com a lógica do mercado, provavelmente não demorará muito tempo até que quase toda a fotografia à base de sais de prata seja ultrapassada pelos processos computadorizados de obtenção de imagem. Por outro lado, a imagem fotográfica digital descola a fotografia do referente externo. O caráter icônico e indicial da fotografia obtida com a câmera escura, superfícies a base de sais de prata e luz garantia-lhe um status de imagem “verdadeira”, a despeito de todos os discursos que enfatizam o seu caráter simbólico.
Em meus trabalhos pretendo criar um sentido de ambigüidade e estranhamento no sujeito do olhar, buscando que ele reflita sobre as questões levantadas acima, instigando-o, ao mesmo tempo, a ver e conhecer. A manipulação dos meios fotográficos não é característica da imagem digital, este procedimento existe desde a invenção da fotografia, seja de forma mais sutil: corte escolha da luz, processamento ou de forma mais explicita: solarizações, fotomontagens, fotogramas, entre outros procedimentos. A fotografia é uma tecnologia que amplia nossos poderes para deixar marcas em superfícies. Ela é, na sua gênese, índice de luz. Para que a fotografia exista na sua concepção mínima, ou seja, como uma impressão luminosa que se fixa numa superfície sensível – tal como uma marca provocada pelo sol na pele - não é indispensável o uso do dispositivo ótico.
O fotograma e a inscrição de imagens em superfícies sensíveis, sem a utilização de máquina fotográfica, foram os principais meios plásticos para uma investigação estética sobre as potencialidades artísticas dos suportes fotográficos a base de sais de prata. Essa pesquisa iniciada no Mestrado em Ciência da Arte, na Universidade Federal Fluminense, em 2004, teve muitos frutos: exposições no Espaço Cultural da Caixa , Galeria da UFF, Ateliê da Imagem, Novíssimos IBEU, FotoRio, entre outros, bem como novas séries que são desdobramentos do projeto inicial.
Na primeira série apresentada: Peles Fotográficas, o trabalho de criação artística procurou revelar as potencialidades do suporte fotográfico , para além da câmera escura, através da utilização de diversas fontes luminosas e químicas que atuaram diretamente sobre o papel fotográfico, provocando diferentes tipos de marcas, como numa pele . As químicas utilizadas no momento da revelação tiveram um novo papel, agindo como pigmentos. Roupas - banhadas em revelador fotográfico - deixaram suas marcas nas superfícies sensíveis. Durante o processo de criação foram trabalhados plasticamente dois conceitos : estranhamento e deslocamento. Nas obras criadas durante a pesquisa, roupas foram deslocadas de suas funções habituais, tornando-se espécies de fantasmas, vestígios de corpos que não estavam mais presentes, nos remetendo a um universo de sonho, a uma instância supra-real. Esses fantasmas de pessoas também nos remetem a uma ambivalência que esta no cerne da imagem fotográfica : morte e eternidade, presença e ausência . A fotografia é a travessia imediata do que estava ali, preso a uma temporalidade cronológica , para o que agora está eternizado somente na película e na memória.
Os fotogramas da série Antes e Depois são fruto de uma reflexão sobre a representação idealizada dos corpos de mulheres na contemporaneidade, aonde um novo repertório de subjetivação vem sendo criado no campo da produção de imagens. A ilusão de uma identidade fixa, a subjetividade e a interioridade, buscas características das sociedades modernas, cedem lugar cada vez mais a uma subjetividade ancorada na exterioridade visível da imagem corporal. O trabalho apresentado criou fotogramas a partir de imagens de revistas femininas que exploram o “antes” e o “depois” de determinada mulher. O “antes” é apresentado por meio de fotos sempre pequenas e mal enquadradas e o “depois” mostra imagens bem iluminadas, cuidadas e em maiores formatos, com essas mesmas mulheres bem maquiadas, penteadas, ou seja, transformadas. O trabalho buscou mostrar por meio de múltiplas utilizações da técnica do fotograma: superposições, transparências, veladuras, como este “antes” - infinito de possibilidades - é reduzido a um “depois” normalmente padronizado. E como o “depois”, no trabalho criado pelo fotograma, não é tão simples como a imagem da revista, pois não mais vemos uma imagem única, mas a frente e o verso da fotografia, apresentando indefinições e dubiedades que pretendem inquietar o espectador, levantando questões tais como: essa transformação externa apagaria a memória do corpo anterior? As transformações internas seriam mais complexas que um simples “antes e depois”?
A escolha do fotograma como maneira de apropriação e transformação dessas imagens não foi acidental. A técnica possibilita múltiplas superposições e manipulações da imagem base e trabalha com uma temporalidade mais lenta que a manipulação de imagens no computador. Essa temporalidade mais lenta, a apresentação de um “antes” mais complexo do que o apresentado nas revistas e um “depois” menos livre de contradições e memória são contrapontos a lógica que parece ser predominante nos meios de comunicação de massa contemporâneos.
A série Paisagens Veladas é constituída por imagens híbridas onde estabeleço relações entre meios fotográficos e procedimentos pictóricos empregando, para isso, a técnica do quimigrama ou chimmigramme, que consiste na utilização das químicas utilizadas no processo da revelação como pigmentos. Neste processo não existe câmera. As imagens surgem da ação do revelador diretamente sobre a superfície sensível. Apesar de representarem paisagens iconicamente, não têm ligação indicial alguma com referentes externos, como na fotografia obtida com a câmera escura. As referências passam a ser internas e podem nos remeter tanto a fotografia como a pintura de paisagem. O tempo é operado em duas ordens de sentido: pela seriação das fotografias e por cada uma delas, já que representam diferentes situações atmosféricas.
Estas paisagens só passaram a existir pela explicitação das potencialidades plásticas de um suporte que estava “morto”, impossível de ser usado numa revelação tradicional. Neste processo, a morte do papel transformou-se em potencial criador e produtor de imagens.
As séries Paisagens Apagadas e Mulheres são desdobramentos da pesquisa realizada com os suportes fotográficos a base de sais de prata e, de certa forma, dão sequencia a dois projetos anteriores: Antes e Depois e Paisagens Veladas.
Nestes trabalhos a imagem fotográfica é “destruída” de diferentes formas: pela ação da água sanitária que retira os sais de prata de partes da imagem onde ela toca; pela ação de tesouras , estiletes e outros objetos que cortam , rasuram e expõe ao máximo os limites da matéria.
Paisagens Apagadas busca o que o suporte fotográfico tem de mais básico: os sais de prata e a película que cobre o papel. Os sais de prata viram quase um pigmento pela ação da água sanitária, criando múltiplos tons de cinza, como um grafite agindo na película. A mesma é descascada do suporte, revelando transparências não percebidas anteriormente. Na sua precariedade reside toda sua potência.
A série Mulheres que tem como base fotogramas refutados no trabalho do projeto Antes e Depois, radicaliza mais a ação sobre os corpos e rostos de mulheres apropriados de imagens de revistas e resignificados pela técnica do fotograma. A água sanitária que agride a pele, também corrói o papel fotográfico, como um peeling ácido, apagando partes das imagens, sombreando outras. A tesoura e o estilete fazem incisões em olhos, rostos e partes do papel, criando novos espaços e texturas.
Salmo 23, o trabalho mais recente, apropria-se de trabalhos anteriores, dialogando com a técnica do recorte e da colagem. A superposição de materiais fotográficos variados, incluindo fotogramas de folhas, radiografias, quimigramas se deu em um processo de construção da imagem muito intuitivo e orgânico, onde uma imagem dialoga com a outra, em uma busca sobre o sentido da transcendência como uma experiência possível por meio do fazer artístico/estético.
Nos trabalhos apresentados procurei, como muitos artistas ao longo da história da fotografia, expandir seus limites , transgredindo a liturgia de uma prática fotográfica canônica confrontando as referências clássicas e exigindo do espectador, uma capacidade de leitura ampliada da fotografia.
Exposição Ateliê da Imagem - Crítica Peles Fotográficas Elvira Virna. Jornal do Brasil 17/11/05.
Claudia Mauad me fez pensar em literatura. Algo na maneira como cria suas imagens fotográficas. Ela pega uma coisa real, impregna em uma química que fará ressaltar detalhes, borrar outros e transporta aquilo para o papel. Depois deixa de molho por um tempo e o que sai é a presença de uma ausência, uma semiótica que será sempre, sem saída, de morte.
Ela pega vestidinhos de boneca, camisolinhas de criança, embebe em revelador, põe no papel fotográfico de grandes dimensões estendido no quintal da casa dela. Quando tira o tecido, sob o sol, ela tem a impressão, em tamanho 1:1, do que foi posto. Pincela o fixador. Lava com a mangueira. Pendura. Às vezes faz o contrário, embebe no fixador e aí o preto será o entorno da coisa, que ficará de um branco meio antigo. E, outras vezes, mistura, ao embeber os tecidos, fixador e revelador. O tom será então meio rosado, meio sépia, em um ressurgimento de um rubor ausente, na face presente do papel. Está no Ateliê da Imagem, na Urca, até janeiro.
Em Conceito de Iluminismo, Adorno e Horkheimer denunciam a racionalidade ocidental, capitalista e industrial, incapaz de trabalhar com a diferença na sua busca pela eficiência.
Claudia Mauad também dá as costas ao produto industrial do qual sua arte deriva. Não trabalha com câmeras digitais. Aliás, não trabalha com câmeras. Ela parodia a fotografia em um trabalho que poderia ser considerado pintura. Em vez de tintas, químicas de sensibilização à luz. A própria luz, em vez das cores oriundas de seu espectro visível. É paródia não só porque Claudia Mauad caçoa dos progressos tecnológicos de sua área ao suprimir a câmera como também caçoa do objeto retratado ao pôr seus vestidinhos em pose. As roupas posam, apontando para um ridículo de quem não está lá. Ela trabalha dialeticamente com a imagem, que é alçada ao posto de co-autora dela mesma - na produção do não-controlado. E ela destrói, deste modo, uma percepção enrijecida do que seja a representação realista. É realista. É a própria coisa, ou pelo menos seu vestígio, sua sombra. Mas estamos aqui na metonímia e não na metáfora.
A escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso, autora de Campo de sangue, também escreveu Os meus sentimentos, ainda inédito por aqui . Neste livro, uma mulher morta fala de sua vida e é uma vida ruim, monótona, sem emoções, prazeres. A morte - um desastre de carro - em compensação é vivíssima. Todos os sons, tatos e visões que lhe passaram despercebidos até então são notados e apreciados.
A apresentação da exposição Peles fotográficas é de Cezar Bartholomeu. Ele diz que a imagem na obra de Claudia Mauad, ao ser criada pelo contato direto com as químicas de sensibilização fotográfica, é revelada e destruída ao mesmo tempo. Diz também que este vestígio do real mantém seus vários tempos no presente. Com isso, o título da mostra adquire um novo sentido. Se pele é a superfície e se o presente é o que vale, Claudia Mauad, assim como Dulce Maria Cardoso, contorna qualquer misticismo.
Ambas fazem uma narrativa que inclui um passado instantâneo, presentificado pelo trauma de uma luz intensa. No romance de Dulce, a luz era do carro em sentido contrário. Em Claudia é a do sol a queimar o papel. E pele, tanto em uma quanto em outra, é a superfície que não se separa, faz parte, concretamente, do que é. Ou foi e continua sendo.
Coleções de Imagens